sábado, 26 de abril de 2014

Considerações sobre Super Heróis ou Esse assunto de novo?


Esses dias, novamente participei de um debate sobre um velho assunto: Super Heróis. Literalmente mais um daqueles debates homéricos de facebook (aliás, eu sou um dos que deixam o debate assim com meus textos descomunais), quando um amigo postou uma crítica de um especialista sobre filme do Capitão América, o Soldado Invernal (mais uma de tantas críticas existentes, diga-se de passagem). O autor da crítica fez comparações com outros filmes de super-heróis recentes, mais especificamente, a trilogia do Batman, de Christopher Nolan, X-Men, First Class e Homem de Aço, de Zack Snyder. Muito já se falou sobre todos esses filmes e não quero retomar tudo o que foi falado nesse post, mas vamos dizer que a discussão se resume a premissa de que os heróis desses filmes fazem parte de uma onda realista de representação do arquétipo, super herói, na qual estaria expressada a complexidade de nosso mundo e na qual os temas abordados nos filmes não mais se apegariam ao binômio maniqueísta do bem contra o mal. Apesar de ainda existir a típica luta contra o mal nos filmes de super heróis mais recentes, as coisas seriam menos "preto no branco" do que parecem.

Eu já escrevi algo a respeito e tenho uma opinião muito pessoal de que nós, homens e mulheres contemporâneos apenas acreditamos que não somos mais tão maniqueístas assim, uma crença muitas vezes carente de conteúdo em minha opinião. Bem, não quero me demorar nesse ponto.


Pretendo apenas colocar aqui as opiniões de um dos caras que conheço que mais entende de HQs, meu amigo Artur Lopes Filho, doutorando em filosofia e que, além de palestrar e ensinar sobre histórias em quadrinhos por Universidades do Brasil afora, foi um dos meus maiores incentivadores a estudar o assunto (emprestando livros especializados e indicando tantos outros). No meio do debate sobre os filmes elencados mais acima, ele postou algumas considerações no facebook. Reproduzirei abaixo o que foi escrito por ele e depois efetuarei, nesse espaço, minhas próprias ponderações, mais como um exercício para debate do que qualquer pretensão de ser conclusivo. Abaixo as referidas palavras do Artur:


"Artigo interessante... como o Marco Antonio Collares já pontuou muitos fatores relevantes, não vou me fazer repetir mas algumas coisas são interessantes ressaltar: Um fator crucial que temos dificuldade de lidar é com a dinâmica discursiva não-objetiva (confusa)... o que isso quer dizer? Bom, de maneira resumida, significa uma "parcialidade", uma interferência discursiva comum quando estamos tratando de assuntos que nos envolvem emocionalmente, como para nós é o caso das HQs e dos demais universos relacionados (tomando partido em prol de um puritanismo ilusório ou de um "pecaminoso" adultério com a essência de nossos personagens queridos). Por isso temos de levar em consideração que 1) Quando tratamos de uma história (a exemplo das HQs), estamos tratando de narração, isto é, toda história é narrada, e por ser narrada, possui um narrador, alguém que conta tal história. Por ser uma pessoa, está sujeita (direta ou indiretamente) a interferir no processo narrativo ao induzir o personagem a agir a favor ou contra algo que ele (como pessoa) considera alvo digno de tal ação. Seguindo uma linha psicológica/filosófica das teorias da narração, defendo que a mítica do personagem ou de um universo está sempre sofrendo transformações na medida em que é narrado em épocas diferentes por pessoas diferentes em culturas diferentes; para piorar, tudo sofre maiores transformações quando interpretado pelo "publico", desse modo gerando uma grande problema quando tentamos dizer a "verdade" ou aquilo que constitui a "essência" de um personagem (por isso podemos afirmar existir tantos batmen, capitães américas, spidermen e etc., quanto roteiristas que narraram suas histórias, quanto fãs que os interpretaram)... 2) Em segundo lugar, sempre ressalto que, apesar de amarmos o universo das HQs, não podemos negligenciar o fato de as mesmas serem parte de uma indústria que, queiramos ou não, tem interesses financeiros imediatos vinculados a sua produção, isso justifica os mega-eventos semestrais com revelações "surpreendentes" (para o publico geral); o relançamento de histórias, grafic novels e coleções antigas (para o público saudosista - com preços mais "apimentados" que a média, visto se tratar de adultos dotados - teoricamente - de renda própria); a transformação ou renovação dos velhos heróis para o público adolescente contemporâneo (adaptando e modificando, muitas vezes, aquilo que nós velhos chamamos de "essência" do herói) e inclusive na produção do "quadrinho" B, ou o velho underground, que também possui seu público consumidor... Essas duas esferas estão em constante relação em uma dialética pulsante, aceitar somente o aspecto industrial é tão negligente quanto aceitar somente o caráter "criativo", "inovador" e "transformador" de uma "boa" ideia. Assim, de minha parte, assumindo uma clara posição dialética, digo que o filme do Capitão América (mesmo não tendo visto) e todo universo Marvel atual reflete um pouco da cultura em que vivemos hoje, onde falar de um moralismo maniqueista está fora de questão (algo um tanto ingênuo inclusive), mas, igualmente, explora esse universo com fórmulas atrativas para manter o publico consumidor ativo, simples assim..."


Depois de algumas considerações nossas, minhas e de outros amigos, Artur postou as seguintes palavras:


"Com relação ao Batman do Nolan, é um filme divertido, mas as pessoas encontram mais polêmicas do que ele apresenta... a questão do personagem se encontrar, se reerguer e etc., mexe diretamente com a mítica do herói amplamente difundida; digo mítica pois, apenas em se tratando de HQs, se difundiu uma ideia universalista de herói que, de fato, não corresponde com aquilo encontrado nas paginas das HQs dos anos 30/40. A ideia do "escoteiro" foi amplamente difundida, fique claro, após a consolidação do famigerado "Comic Code Authority" (pós-Segunda Grande Guerra); antes disso, a indústria era regida pela venda, do vigilante assassino, ao bom moço vestido de patriota (é só pesquisar). Mas se existe algo comum nas HQs de heróis dos anos 30/40 é o fato de todos (sem exceção) serem movido por um princípio de justiça ideal (transcendental), comum, da mitologia à religião, presente na política e nos sistemas econômicos ao longo da grande história. Esse ideal transcendental não é novidade, o "Comic Code Authority" apenas pasteurizou aquilo "idealizado" enquanto conveniente ao USA naquele determinado período (vindo a se popularizar enquanto "essência" do herói no ocidente). Assim, todo esse discurso de romper com a tradição levando tons de cinzas e etc., corresponde a uma reação aquilo popularizado enquanto mítica devido a uma pasteurização estadunidense oriunda de um código de conduta instituído. Mas o princípio transcendental está lá, a ideia universalista de uma justiça maior encarnada na ação do herói... bom isso não é novidade... Batman acima da lei, Capitão América e seus valores "superiores", até mesmo Superman (que na sua primeira HQ invade a casa de um senador para obrigá-lo libertar um inocente de morrer na cadeira elétrica). O que Nolan mostra em seus filmes não é grande novidade e está longe de ser uma "revolução" de proporções homéricas, como alguns entusiastas tentam aclamar, como se as HQs nunca mais fossem ser as mesmas... de minha parte fico com a diversão que o filme me proporciona (em um âmbito emotivo), particularmente me divirto muito com todas as produções que temos hoje, mas atribuir todo esse valor é construir uma nova mítica."




Bom, como diria Jack, o Estripador, vamos por partes. Como historiador não posso me furtar ao tratamento do específico em qualquer análise, aos diferentes tempos e as múltiplas historicidades existentes no processo de consecução de uma obra artística, seja uma HQ, uma saga e até uma trama de criação de um personagem. Trato aqui da mídia, histórias em quadrinhos, mas tais premissas valem para as mais diversas mídias e produções culturais existentes. Artur demarca isso sabiamente em seu post, no meu entender, quando expressa que existem diferentes contextos nos quais os super heróis foram produzidos e que, procurar uma única "essência" no que tange a um personagem pode soar um mero saudosismo de fãs puristas. Esses fãs, por possuírem certa identidade com seus heróis favoritos, as vezes ficam cegos para esse fato. 


Por tais motivos, quando falamos de um Capitão América, de um Batman, de um Homem Aranha, de um Superman, precisamos pensar realmente em qual desses personagens estamos falando, em qual contexto. Seria o Homem Aranha do Stan Lee, do Steve Dickto, do John Romita ou do Todd MacFarlane? Seria o Batman do Bob Kane, do Neil Adans, do Dennis O'Neil ou do Frank Miller? Seria o Superman do John Byrne ou aquele dos dois jovens nerds que o criaram, aquele super que saltava de prédio em prédio e literalmente espancava políticos e mafiosos, quase que a expressão da ideologia do operariado, nos dizeres de Grant Morrison? Quem sabe seria o Super interpretado pelo aclamado Christopher Reeves? Ah, existe também o super do outro Reeves, mais antigo. Escolhamos um deles não é mesmo? E o Capitão América, seria o patriota bandeiroso criado pelo Jack Rei Kirby e pelo Joe Simon ou seria aquele escoteiro encontrado pelos Vingadores nos anos 60, em uma trama escrita pelo Lee? Ah, também existe aquele Capitão do macartismo, que perseguia comunistas pelas ruas dos EUA. 


Bom, não há como negar que essas pesguntas são pertinentes, assim como seria pertinente perguntarmos antes de respondermos qualquer coisa sobre o personagem histórico, Júlio César: "de qual César estamos falando, o personagem de Suetônio, de Plutarco ou aquele César descrito por ele mesmo em suas duas obras publicadas?" Uma pergunta bastante estranha se considerarmos que trata-se de um personagem histórico, ou seja, alguém que, diferentemente do Superman ou do capitão América, existiu de verdade. Mesmo assim, a julgar por tantas interpretações existentes sobre essa figura histórica, trata-se de uma questão que pode ser feita, ao contrário do que imaginamos.


Além de tudo isso, devemos ressaltar a forma como o público trata os super heróis, tal como colocado pelo Artur em suas linhas, visto que a recepção do público interfere naquilo que é ou naquilo que vai se tornar o super herói com o tempo (melhor dizendo, aquilo que se tornou em seus mais de cinquenta anos de história). 


Existe uma área de estudos somente sobre a recepção por parte do público no que concerne aos mais diversos artefatos culturais e científicos, ou seja, um área ampla de estudos sobre como o público interpreta uma dada obra ou artefato cultural em dado contexto, os significados concebidos pelo público no ato de leitura e apropriação da obra. A ideia em voga pelos especialistas é que o público não é passivo nesse processo, ou seja, o público não apenas degusta as obras dos produtores da cultura, mas também gera interpretações que igualmente influenciam os ditos autores. Assim, o público do contexto do macartismo, embebido pela paranoia anti comunista poderia ter influenciados os autores (que também eram pessoas influenciadas pela cultura da época) a resumirem as histórias do Capitão América ao maniqueísmo da Guerra Fria, assim como o público do Homem Aranha do contexto dos anos 70 poderia ter influenciado a famosa história do personagem que tratou do consumo de drogas e seus efeitos nefastos sobre os jovens, visto que era um assunto na pauta daquele contexto. Isso sem falar nos tipos de público existentes, na faixa etária e até na posição social dos leitores. Luke Cage, por exemplo foi um herói negro voltado para um público específico dos anos 70, a saber, os negros das periferias dos EUA que lutavam por direitos civis. Tal contexto afetou seus autores e suas histórias, bem como a forma como o herói deveria agir e os valores expressos por ele. em suas tramas.


A segunda consideração diz respeito ao fato da existência de uma indústria cultural de quadrinhos bastante atuante nas produções. As ponderações de Artur se mostram novamente pertinentes, visto que os lucros condicionam os artistas e suas respectivas produções culturais. Isso faz parte do metier corporativo e quem conhece a excelente obra de Sean Howe sobre a história da empresa, Marvel Comics, sabe que as decisões corporativas em nome da busca por lucros rápidos condicionaram muitas histórias e até personagens, legando para o público características específicas desses personagens. Mega eventos, crossovers e até as famosas novelas gráficas entraram na pauta das grandes editoras no final dos anos 70 e decorrer dos 80, tanto que o roteirista inglês, Alan Moore, chegou a dizer certa vez que as grandes editoras descobriram o segredo de elevar as vendas ao máximo. Bastava colocar na capa de qualquer historieta de baixo calão o selo Graphic Novel, como se tratasse de uma trama especial voltada para um público especial, mais adulto e crítico. 


Quando o Artur reitera que aceitar somente o aspecto da indústria é tão negligente quanto aceitar somente o aspecto artístico criativo dos autores, ele está simplesmente expressando o que deveria ser óbvio para todos nós, mas que muitas vezes não é por questões de pura paixonite ou ignorância: a arte criativa dos artistas e quadrinistas e a indústria cultural andaram e ainda andam lado a lado no processo de criação dos super heróis mais famosos de todos os tempos, em meio a embates entre criação e pasteurização, sendo ao mesmo tempo partes de produções conjuntas, imbrincadas, de tal forma que existe espaços para a criatividade em alguns momentos, enquanto que em outros, essa mesma criatividade é podada pelos interesses corporativos. 


A dialética apregoada pelo Artur está assim em duas esferas distintas e ao mesmo tempo entrelaçadas. Em primeiro lugar, na relação do artista com a indústria cultural e, em segundo, na relação intrínseca entre o contexto presente de produção do artefato cultura e a tradição que envolve os super heróis, na encruzilhada entre inovação e necessidade de certas permanências que envolvem o gênero (como os uniformes colants multicoloridos que são retirados de cena em alguns momentos específicos).


Aqui gostaria de tecer então uma breve análise. Falar na essência de qualquer coisa, incluindo os super heróis de quadrinhos, para um historiador, é completamente estranho a sua profissão, visto que historiadores preferem as especificidades frente as permanências (falar em essência da guerra não explica o acontecimento II Guerra Mundial para a maior parte dos historiadores). Ao mesmo tempo, não consigo deixar de tratar daquilo que defino como o caráter icônico dos super heróis, algo que talvez não esteja na origem do gênero, mas que foi se definindo com o tempo. 


Isso porque existe alguns padrões que estão presentes em diferentes contextos (assim como acontecia com os mitos existentes no Mundo Antigo, por exemplo), como a luta do indivíduo contra o crime, algum tipo de vilania na qual o super herói precisa enfrentar, algum tipo de mal interior ou exterior que ameaça os chamados inocentes (o que seria isso no mundo real eu nem imagino, talvez as crianças), poderes ou habilidades extraordinárias (e o termo super herói é duplo, não somente os poderes e as habilidades, mas também a retidão moral), algum tipo de plano de dominação e destruição por parte do antagonista do herói e por aí vai. 


Também está presente no gênero a discussão moral típica das narrativas míticas, envolvendo não somente a trajetória do herói, segundo o modelo construído por Joseph Campbel, mas igualmente o ensinamento moral para seus leitores, uma espécie de educação moral que não era incomum, por exemplo, entre os gregos antigos quando seus aedos ou rapsodos cantavam e recitavam seus mitos, o que se constituiu na chamada paideia da polis. 


Podemos falar realmente de muitos Capitães Américas, mas o uniforme, a ação, a luta contra algum vilão declarado e estereotipado, seja sutilmente ou não, será a tônica das tramas do personagem e mesmo quando mudanças ocorrerem, muito pouca coisa tiraria, pelo menos de boa parte do público, a ideia de que deve torcer pelo protagonista da história. 


Algum tipo de ideal de justiça, liberdade estará presente nas tramas, algum grau de responsabilidade e comedimento (ainda que a linha seja muitas vezes elástica e seja esticada ao máximo por algum artista menos ortodoxo). Além disso, ainda que possamos em algum momento de nossas vidas discutir tais conceitos, seja de liberdade, justiça e responsabilidade, ainda que possamos afirmar que eles mudam com o tempo, de acordo com cada autor, público e até com a orientação da indústria, tais ideais não serão completamente banidas do gênero super heróis. Nada de novidade até aqui.


Afirmar que os super heróis são parte de uma narrativa mítica com tonalidades contemporâneas (de meados do século XX em diante) e ao mesmo tempo como parte de um ideário bastante específico, vinculado em grande parte a ideologia dos EUA do período do entre guerras e principalmente, do decorrer da II Guerra é necessariamente demarcar a dialética apregoada pelo Artur. Isso porque, enquanto parte de uma narrativa mítica, os super heróis trazem questionamentos de cunho moral que dizem respeito a todos nós, seres humanos (e isso nos mais variados contextos, o que expressaria questões morais de cunho universal), alguns bem feitos outros não, alguns um pouco mais profundos, a maioria, bastante rasos e carentes de complexificação. 


Porém, enquanto parte de um ideário estadunidense que aos poucos viajou o mundo (interessante demarcar o livro, Superdeuses, de Grant Morrison, que explica esse processo de difusão do gênero pelo mundo afora logo após a II Guerra Mundial), os super heróis com o tempo se tornaram uma das múltiplas expressões desse ideário, do sonho americano por justiça e até possibilidade de ascensão social com a demarcação da livre iniciativa individual, da luta por direitos e por mais liberdade de expressão até a busca pela ordem social, política, institucional, ora como agentes do poder estatal (na época da Guerra, por exemplo), mas muitas vezes atuando acima ou em paralelo a esse poder, como indivíduos livres e apaixonados pelo que fazem, que se sacrificam por seu ideal individual, ainda que muitos deles estejam comumente cheios de traumas ou levados por acontecimentos marcantes de sua trajetória pessoal. 


Quando o Artur afirma que o super herói escoteiro não era um padrão dos anos 30/40 ele está correto, visto que os heróis não surgiram como idealistas comedidos, mas como vigilantes detetivescos duros, brutais, quase que policialescos ao extremo. Com o tempo, o caráter icônico escoteiro de alguns deles passou a ser uma referência do comedimento necessário ao herói, pelo menos em boa parte de suas trajetórias. 


Muito disso teria a ver mesmo com o Comic Code Autority, que definia um padrão de conduta, um maniqueísmo raso ao extremo e externado pela indústria como forma de garantir a manutenção das publicações e vendas. Mas como historiador eu tenho de reiterar o contexto mais amplo da Guerra Fria e o maniqueísmo inerente de um mundo bipolar, fora o aspecto do pensamento histórico de longa duração, segundo os preceitos do historiador Fernand Braudel. 


Longa duração no que tange ao pensamento que se afirma por oposição, na linha do terceiro excluído, no qual o sujeito possui uma escolha entre duas possibilidades, o certo ou o errado, o bem ou o mal, a verdade ou a mentira. Não precisa ler a Bíblia nem qualquer obra, científica ou mais tradicional para evidenciarmos que o pensamento que opõe coisas por pares faz parte da história ocidental, seja isso positivo ou não (e olha novamente o binômio do isso ou aquilo). O tal código de conduta da indústria cultural dos quadrinhos de super heróis não explicaria, portanto todo o maniqueísmo do escoteiro contra o vilão maligno por natureza, o que é reiterado por Artur quando afirma que "se existe algo comum nas HQs de heróis dos anos 30/40 é o fato de todos (sem exceção) serem movido por um princípio de justiça ideal (transcendental), comum, da mitologia à religião, presente na política e nos sistemas econômicos ao longo da grande história. Esse ideal transcendental não é novidade, o "Comic Code Authority" apenas pasteurizou aquilo "idealizado" enquanto conveniente ao USA naquele determinado período (vindo a se popularizar enquanto "essência" do herói no ocidente). Assim, todo esse discurso de romper com a tradição levando tons de cinzas e etc., corresponde a uma reação a aquilo popularizado enquanto mítica devido a uma pasteurização estadunidense oriunda de um código de conduta instituído. Mas o princípio transcendental está lá, a ideia universalista de uma justiça maior encarnada na ação do herói... bom isso não é novidade..."


Dessa forma, existe algum padrão popularizado, pasteurizado, uma linha de conduta que faz dos muitos Capitães Américas um super herói e isso vai além do uniforme, dos poderes e/ou habilidades. É como pensar no Aquiles, dos gregos, em como ele, mesmo não fazendo parte do nosso padrão de herói, era um exemplo de herói mítico para os gregos, segundo os padrões gregos, ainda que o Aquiles cantado em Atenas não fosse idêntico ao cantado em Esparta. 


Ainda assim havia um ethos na conduta do Aquiles que deveria ser comum a todos os cantos sobre ele e esse ethos não estava vinculado somente aos seus poderes de semideus, sua famosa invencibilidade (que possui duas causas, a mais famosa, o banho no Rio Estige a outra, menos famosa, a armadura confeccionada por Hefestos), mas também a sua conduta. Como herói, Aquiles deveria ir a guerra, deveria confrontar seus destino, mesmo sabendo dos sacrifícios que teria de enfrentar (no caso dele a morte na Guerra de Tróia), teria que usar seus poderes na batalha e duelar contra outros heróis e/ou criaturas míticas (e não vilões, pois isso não era do metier dos heróis do mundo antigo) com honra, bravura e impetuosidade. Saber o destino e enfrentá-lo era o caráter icônico de todos os heróis gregos, assim como lutar por justiça e para defender inocentes seria o caráter icônico dos super heróis ficcionais de nosso mundo atual.


Quais são os significados de tudo isso que foi afirmado aqui? O principal, é que a ambivalência entre mudança e continuidade é a tônica dos super heróis e de tantos outros gêneros artísticos, entre realidade e ficção, entre tons de cinza e tons de preto no branco, ora pendendo mais para um lado, ora mais para outro. Seria esse caráter icônico afirmado a dita "essência" do super herói? Se considerarmos que trata-se de um gênero específico, que o Batman, por exemplo jamais vai poder ser representado assassinando gatinhos e criancinhas inocentes, que ele terá poderes ou habilidades especiais (ainda que perca isso em alguma trama por um certo período), que ele pode morrer, ser aleijado, cair em dúvidas sobre si mesmo, mas jamais se tornar o seu oposto (e isso acontece, claro, mas o herói deixa de ser tratado como tal), então terei que dizer que existe alguma essência sim e como historiador isso me incomoda, pois uma visão essencialista de identificação pode bitolar qualquer análise sobre contextos, não importando o tema proposto. Por isso me nego a ser muito conclusivo aqui, esperando o debate que se segue a esse nem um pouco breve texto. Sim, esse assunto, de novo...


domingo, 16 de março de 2014

A Era Hiboriana de Conan e suas Nações



Um tema bastante interessante diz respeito aos chamados "usos do passado", mais especificamente, a forma como as sociedades de outros tempos e lugares são representados no presente, ou melhor, em algum contexto mais contemporâneo, com toda a carga ideológica, conceitual e temática inerentes ao ambiente sócio-histórico, político e cultural do referido contexto.

Como bem afirmado pelo historiador medievalista da Escola dos Annales, Marc Bloch: "o passado em si não é o objeto do historiador, mas sim a importância do presente para a compreensão do passado e vice versa". 

Isso significa afirmar que quaisquer fontes, documentos e textos, quaisquer conjunto de enunciados, quaisquer obras da literatura, ou mesmo quaisquer artefatos culturais de naturezas diversas (iconográficos, gráficos ou materiais) que tratem de algum passado, seja histórico ou munido de traços históricos, todos esses documentos dispõem de signos, significantes e significados inerentes ao contexto presente de consecução dos mesmos.

Nesse ponto estamos próximos daquela arrebatadora verdade acerca das obras de Homero, a Ilíada e a Odisseia. Devemos lembrar que os poemas narravam eventos em torno da Guerra de Troia e depois, sobre o retorno de um de seus heróis para sua terra natal, a Ilha de Itaca, tratando-se assim de eventos que teriam ocorrido por volta de 1200 A.C, no final do chamado Período Minoico-Micênico da história grega. 

Porém, quase toda a questão acadêmica sobre os conhecidos poemas não circunda somente na enfadonha Questão Homérica de definição da real autoria dos poemas, mas sim no fato de que o poeta (ou poetas, segundo alguns) colocou diversos traços de sua própria época histórica no passado retratado, traços históricos do Período Homérico da Grécia Antiga (e o nome, Período Homérico não se deve a esse fato?), com elementos culturais, políticos e sociais desse período.

Assim sendo, os brilhantes estudos de historiadores renomados do porte de Jean-Pierre Vernant ou de Pierre Vidal-Naquet sobre o Período Homérico não deixam de lidar com os supracitados "usos do passado", visto que eles procuraram compreender, entre tantas outras coisas, os elementos históricos do período de compilação e difusão do corpus homérico, os aspectos sociais, políticos e culturais do mundo do autor da obra e que foram inscritos e misturados, conscientemente ou não, ao passado mítico narrado. 

Não esquecendo-nos, claro, de deixar demarcado que grande parte desse processo ocorreu devido aos aspectos inerentes da tradição oral, que usualmente transforma os eventos narrados oralmente, devido as contínuas recitações de poemas e narrativas proferidas de "boca em boca".

É nesse sentido que trato o tema do título deste post, "A Era Hiboriana, de Conan e suas Nações". Isso porque, o criador da personagem Conan, da Ciméria, o texano Robert E. Howard não criou somente um personagem, consolidando igualmente todo um gênero literário e narrativo denominado de Sword and Sorcery (Espada e Feitiçaria).

Ele criou, para além disso, um "mundo meta-histórico", uma Era histórica ficcional com elementos históricos "reais", melhor dizendo, uma espécie de Era histórica anterior ao Neolítico, onde haveria um conjunto diversificado e complexo de civilizações e sociedades, que segundo a própria mitologia criada seriam destruídos em um grande cataclisma, evento esse que teria sido o marco inicial da história cronológica da humanidade, munida de sua evolução linear convencional comumente difundida em livros didáticos.

O que chama a atenção, no entanto, é que Howard se utilizou de elementos culturais, políticos, religiosos e sociais de civilizações históricas, tanto as ditas civilizações antigas como aquelas sociedades estruturadas na Idade Média européia e oriental, em uma espécie de miscelânea de povos e culturas, com representações de povos que apresentam semelhanças com os gregos e romanos antigos, com os mongóis do medievo, com os árabes e europeus do medievo, os japoneses, os chineses e os egípcios antigos, os persas, mesopotâmicos, eslavos, magiares e tantos outros.

A Era Hiboriana seria assim uma Era de pré-civilizações históricas, datada mais ou menos em 10.000 A.C, uma espécie de "contexto histórico-ficcional" de diversos povos e culturas que, segundo Howard foram destruídas e apagadas da memória da história convencional em meio há um fenômeno climático da natureza, ainda que tais povos tivessem traços daquelas culturas e civilizações que viriam a surgir a posteriori.

Tratar-se-ia de um passado semi esquecido de nossa própria história, um passado com características das civilizações que viriam a se organizar posteriormente e que para nós, contemporâneos do século XXI, estão inseridas na chamada História Antiga e Medieval, segundo os matizes convencionais da disciplina da história.

O próprio Howard, em meados da década de 1930 escrevera um texto chamado, A Era Hiboriana e no prefácio deste texto defendera que seu objetivo seria conceber uma conotação mais realista para as aventuras de Conan, como que um pano de fundo ficcional para uma série de narrativas que teriam uma base realista. 

Assim, a Era Hiboriana seria como que um parâmetro para as narrativas ficcionais de Conan, sendo que Howard se comprometia a seguir fielmente esse parâmetro previamente concebido por ele, tal como o faria qualquer escritor de um romance histórico em relação a "história real" das civilizações humanas.

Reinos, civilizações, impérios e nações ficcionais surgiram então nas linhas de Conan, bem como um mapa histórico-geográfico dos continentes da África, Ásia e Europa, unidos em uma espécie de Pangeia, onde estariam inseridos todos esses reinos, nações e civilizações baseados em elementos mesclados de sociedades da antiguidade e do medievo.

Nesse sentido, a famosa Aquilônia, onde Conan se tornaria rei ao final de sua vida e carreira seria culturalmente e politicamente a mescla do Império Carolíngio com o Império Romano Germanizado dos séculos IV e V D.C, a Ciméria, terra natal do bárbaro, equivaleria a uma Inglaterra Celta com suas tribos bretãs ainda não "civilizadas" e pré-romanas, enquanto que a Coríntia seria o amálgama ficcional da civilização grega clássica do século V A.C. 

A Nemédia, por sua vez, apareceria como que uma versão suis generis do Sacro Império Romano Germânico do medievo, a Stygia, quase que o espelho distorcido do Egito Antigo faraônico, misturado ao período pré-dinástico, ficando a Hiperbórea como o reflexo ainda mais bizarro da Rússia czarista misturada a um totalitarismo soviético anacrônico (ainda que não anacrônico em relação aos anos de consecução da narrativa de Howard), enquanto Khitai apareceria como a China de Marco Polo e Shem, seria vislumbrada como uma nação a integrar os povos semitas que um dia ocuparam a Mesopotâmia, a Síria, a Palestina e a Arábia de nosso mundo "real histórico".

Howard efetuou todo esse movimento como que em auxílio para suas tramas, de modo a torná-las mais verossímeis a seus leitores, o que sugere um alto grau de imaginação histórica da parte dele. Não é descabido explicar aqui que o filósofo da história, R.G. Conligwood afirmara, em uma famosa obra teórica, que ao longo do processo linear histórico ocorrera um desenvolvimento gradual da imaginação histórica por parte dos homens, principalmente aqueles do Ocidente.

Essa apurada imaginação histórica, entendida como o conjunto de ideias gerais que temos acerca dos fatos e eventos do passado das sociedades humanas, teria tornado a dita civilização ocidental cada vez mais consciente de seu papel e de sua identidade no mundo contemporâneo. 

Concordando ou não com as premissas da imaginação histórica enquanto imperativo identitário de uma mal definida civilização ocidental, uma coisa é certa; enredos narrativos ficcionais que baseiam-se na história acontecida costumam gerar identidades nos receptores dessas respectivas narrativas, visto que o passado é um dos elementos mais bem sucedidos para tais fins, sendo coerente e crível uma construção histórica complexa e não totalmente arbitrária para o sucesso dessas narrativas ficcionais.

É nesse ponto que gostaria de tratar o termo "Nações" na Era Hiboriana de Conan e no fato de Howard, conscientemente ou não, se valer de seu próprio contexto histórico, aquele da primeira metade do século XX e especificamente, aquele da Grande Depressão dos anos 1930, para construir seu mundo ficcional. 

Isso porque o mapa da Era Hiboriana e as narrativas sobre os próprios Reinos e Impérios desse mundo ficcional, possuem características históricas não somente do mundo antigo e medieval, mas igualmente dos Estados-Nações Modernos, principalmente aqueles definidos como Nações Civilizadas por Howard. 

Seguindo os princípios tradicionais de que uma nação se constitui pela história em comum, língua, instituições e etnicidade dos povos que integram seu território e são assim governados por um Estado enquanto aparelho ou entidade política, Howard deu um caráter moderno para essas Nações na obra, visto que, como bem explicado pelo historiador Eric Hobsbawm, todos esses elementos poderiam até pré-existir em quaisquer coletividades do passado, mas a homogeneização de todos esses elementos possuiriam uma artificialidade inexistente em períodos anteriores ao século XIX.

Em outras palavras, Howard executou a constituição de um mundo integrado por fronteiras nacionais ao estilo contemporâneo, um mapa recortado por nações herméticas e de fronteiras definidas, não somente espaciais, como também culturais, linguísticas, políticas e étnicas, o que inexistia no Mundo Antigo e muito menos no Mundo Medieval.

Um dos maiores especialistas brasileiros no que tange as narrativas de Howard e seu mundo ficcional, Renato Amado Peixoto reitera em dois textos acadêmicos que o auto questionamento a identidade sulista e texana do autor auxiliaram na consecução de uma narrativa permeada de verossimilhança, bem como uma identidade familiar que ele se atribuía e reforçava constantemente. 

Isso porque Howard seria um questionador niilista da moral sulista dos EUA, dando vasão ao mundo selvagem colonizado pela expansão do oeste do século XIX, aquele mundo dos índios cheroquis e das demais nações indígenas que foram exterminados pelos brancos. 

Por tal motivo que observamos a exaltação em sua obra do tipo selvagem e do bárbaro em contraposição ao homem civilizado. Isso também teria sido efetuado com base em sua identidade familiar, visto que ele descendia de ancestrais irlandeses por parte de mãe, levando-o a idealização dos povos celtas que lutaram e enfrentaram os ditos povos civilizadores, tais como os romanos da antiguidade.

Mas existe outro ponto na narrativa de Howard, especificamente aquela em torno da Era Hiboriana, que vai muito além de identidades pessoais, regionais ou familiares, uma identidade vinculada a seu macro-contexto. O fato é que Howard, tal como a maior parte dos homens da primeira metade do século XX, guardada as proporções, não conseguia conceber o Mundo Antigo e Medieval, ainda que inseridos em seu mundo ficcional,  fora dos marcos nacionais usuais do século XIX em diante, dos binômios nação-estado, povo-território, entidade política e coletividade social. 

Assim sendo, os estígios teriam uma mesma língua, seriam uma mesma nação étnica, governados por um Estado centralizado, uma entidade política estável, o mesmo valendo para quase toda a Aquilônia (com exceção de Pontain e da Gunderlândia, que constituiriam-se em feudos semi independentes), para a Nemédia e tantos outros reinos ou civilizações do mundo ficcional de Conan. 

O recorte espacial de sua Era Hiboriana não seria nem aquele do medievo e suas identidades fluídas e feudais e nem aquele do Mundo Antigo, com seus contrastes regionais e seus conflitos endêmicos entre centro e periferias conquistadas, mas sim, o espaço delimitado do mundo contemporâneo, ainda que os povos representados nesse espaço se parecessem culturalmente com aqueles da antiguidade e do medievo.

Os estudos em torno dos "usos do passado" então demonstram o quanto um tempo pregresso, ainda que pretensamente histórico em algumas de suas bases, acaba tendo ainda mais traços contemporâneos do que aparenta. O lado positivo, em se tratando de uma obra ficcional com traços históricos, é que, tal construto, ainda que um tanto arbitrário em relação ao passado, mas sincronizado com relação ao presente, gera identidades nos leitores, que se vinculam ao referido mundo apresentado na narrativa e se deliciam com as tramas de um bárbaro errante entre suas fronteiras, tão distante e ao mesmo tempo tão próximo ao nosso mundo nacional contemporâneo.


A Era Hiboriana de Conan e suas Nações delimitadas, tal como um mapa moderno de Estados-Nações consolidados.


quarta-feira, 5 de março de 2014

Em Roma...

Na Trilha do Tempo



Menênio Agripa acordou em meio aos restos de corpos destroçados na planície de Canae.
- Fora daqui, animal!! Bradou ao zéfiro, espantando um abutre que bicava-lhe a têmpora.
Uma confusão de odores fétidos sobrecarregava o pensamento, mas o som inaudível do nome do monstro cartaginês insistia em ecoar.
 -Aníbal, seu verme!! Gritou.
Como era possível o massacre de Canae? As legiões estavam em maioria sobre as tropas da Espanha e da África, lutando por sua pátria, “na defesa de nosso maiores”, como costumava-se dizer. Como era possível que 80 mil legionários romanos treinados e disiplinados tivessem sido massacrados perante a metade das tropas bárbaras?
- Malditos Númidas!! Bradou novamente, levado pela cólera e pela dor, resultado do profundo talho na têmpora e do ferimento na orelha esquerda. Que orelha?
- Onde está minha orelha? Deceparam minha orelha! Malditos Númidas! Maldito Aníbal!!
Novamente o som do nome do monstro proferido aos ventos, enquanto Agripa se levantava e cambaleava entre os corpos, muitos dos quais seus amigos e aliados. Lá e acolá estavam os Cláudios e os Fábios, destroçados como porcos no abatedouro, sem falar nos Júlios, mais distantes, bem como Caio Enobardo, Emiliano Fúngio, Luciano Póstumio ou mesmo Drúsio. Pobre Drúsio, tão jovem, espinhento, tagarela e valoroso, tão cadavérico e estúpido à beira do rio escarlate barrento.
Será que não haveria mais ninguém vivo para lutar e morrer a beira daquele Estige de água, carne e ossos?
- Ainda tem um romano com vida nessa maldita Itália, seus cornos virulentos!! Bradou novamente, enquanto seguia adiante, alquebrado até encontrar uma trilha sinuosa de tijolos alaranjados, para não dizer, amarelo ouro resplandecente. O cheiro continuava insuportável, não somente de sangue misturado com as tripas dos varões romanos mutilados, mas também das fezes de todas aquelas gentes com os buchos de fora.
Como Aníbal tinha vencido aquela batalha, munido somente da metade das forças romanas? Novamente a pergunta latejando na têmpora machucada.
Em meio ao calor da batalha, quando Menênio deu por si, os romanos já estavam cercados, em maior número sim, mas estranhamente cercados, aprisionados em sua própria cunha de ataque.
- Malditos Númidas!!
Uma última maledicência desferida e Agripa entrou finalmente na trilha de ouro, em direção a sua querida e distante Roma.
Roma. Sim. Todas as estradas levam a Roma. Onde ele ouvira essa expressão? Seria do ex-ditador, Fabius Máximus? Ah, se aqueles abutres tivessem seguido os conselhos do ditador… Agripa achava que ouvira a expressão no Fórum, em meio aos embates políticos do dia a dia. Sim, tudo sempre ocorria no Fórum, desde as festas, as procissões, os triunfos e até os assassinatos cotidianos das gentes metidas à bestas. Em Roma, bastava três clientes pobres para um sujeitinho qualquer se considerar melhor do que os demais. Nem precisava pertencer a nobilitas, a elite romana dona da maior parte das terras da península. Comprava-se dignitas nas esquinas, nas insulae e nas vielas sujas e bolorentas, com suas meretrizes tuberculosas.
Ah, querida Roma, tão bela e decadente, tão justa e insólita, tão grandiosa, lustrosa e ao mesmo tempo fétida e suarenta, tão cheia de luxúria e espanto. Ainda assim tratava-se sua querida Roma, a mãe de todos os romanos, de toda uma civilização em meio ao caos do mundo dos bárbaros, desprovidos de lei ou justiça, daquilo que tornava os homens superiores, a propriedade e a política. Malditos cartagineses por destruir aquela civilização! Malditos Númidas de Aníbal, pensava Agripa. 
O pai de Aníbal, Amílcar, já havia perdido na Sicília há tempos atrás e agora o filho desferia uma desforra insólita, atrevendo-se a atacar a Itália, no coração de um Império que se formara.
- Quem você pensa que é Aníbal? Acha que pode desbancar um Império com elefantes, mercenários e númidas?
Enquanto cambaleava pela trilha sinuosa, Agripa vislumbrou uma miragem, uma cidade estranhamente irreal, com seus prédios de mármore, madeira e esperanças perdidas. Roma? Talvez. Em chamas? Com toda a certeza dos deuses indigetes e da tríade capitolina.
- Por Júpiter! Espantou-se ante a visão avermelhada do fogo que consumia carne, vermes e vinho. Uma cidade em chamas aparecera ao lado da trilha, enquanto dois homens conversavam para além de suas muralhas, do alto de seus imponentes cavalos. Um deles era nitidamente romano, a julgar por sua postura altiva e pelo rosto de linhas retilíneas de guerreiro genuíno, o outro, certamente um grego.
Quem seriam? Não importava a Agripa saber naquele momento. O romano seria um mero pretor ou um cônsul? Não lhe cabia responder de antemão. O romano, a olhos vistos, vergava sua armadura dourada com a imponência do próprio Júpiter. Utilizando-se de um latim clássico e nobiliário, falou ao grego, sem nem mesmo se virar para olhar-lhe nos olhos:
- Estás vendo Políbio? Cartago, em chamas. Só temo que um dia seja a vez de Roma. Queiram os deuses que eu, Cipião Emiliano morra antes de minha Roma arder nas chamas de sua própria destruição, tal como os púnicos, outrora invencíveis estão vendo agora sua querida Cartago.
As figuras ficaram ocas, turvas e opacas, perdendo-se na névoa da fumaça que subia aos céus, como a silhueta de uma prostituta cor de ébano lustroso em meio às lupercais do porto de Ostia.
Cartago destruída? Foi essas palavras que Agripa ouviu? Como isso ocorreu? Quando? Será que enquanto os romanos eram destroçados em Canae, outra força atacava Cartago? Seria toda aquela mortandade cômica uma espécie de ardil macabro desenvolvido pelos sábios do senado?
Não, isso não podia ocorrer… Todas as forças militares estavam em Canae. A perda de sangue… Pensou. Sim, a perda de sangue e o calor insuportável estavam fazendo Agripa ver miragens. Talvez estivesse moribundo agora, em meio aos corpos dos demais, arrastando-se pelo chão enlameado como um porco de ventre aberto, imaginando-se em uma trilha de ouro e sonhos de grandeza, em direção aos Campos Elíseos.
Logo, uma nova miragem. Tratava-se de um homenzinho baixo, virulento e todo queimado, com bolhas vermelhas e pústulas abertas pelo que seria um rosto. Ele lhe apareceu como um fantasma lírico e apontou o dedo em direção a Cartago, em chamas. Com os olhos esbugalhados de dor e cólera, gritou-lhe:
- Vistes bem romano? Esse é o legado de sua civilização. Morte e destruição!! Essa é a herança de seu Império ardiloso!! Pax Romana… Os mortos estão sempre em paz, não é mesmo?
- Cala a boca, corno maldito!! Foram vocês que invadiram a Itália. Foi Aníbal quem trouxe a destruição para os campos da Campânia e da Sicília!!
Novamente bradou Agripa, febril, investindo contra o homem, seu gládio semidestruído em punho, enfiando-lhe o restolho da lâmina no ventre. A morte espreitou a planície novamente.
- Do que… Você está a falar? Falou-lhe o moribundo, caindo em seus braços.
- Cipião, o Africano venceu Aníbal, há mais de 50 anos atrás… Em Zama. Na batalha de Zama…
Novamente Agripa estacou na trilha e as imagens sumiram como que fugidias; a manifestação de uma mente destituída de razão. Foi quando ele percebeu que avançar na trilha significava avançar no tempo, um tempo que mostrava a glória do Império Romano, invencível e eterno, como deveria ser.
Afinal, não era Roma conhecida como a Cidade Eterna? Quem Aníbal pensava que era por ousar intencionar romper com o destino manifesto de Próculo, aquele estimado cidadão que ouvira do próprio Rômulo em pessoa a declaração deste destino, logo quando o rei elevou-se a divindade?
Agripa estacou na estrada e gargalhou alto, gritando novas palavras virulentas aos ventos:
- Não há como nos vencer Aníbal! O destino romano é triunfar!! Por mais que venhamos a perder batalhas, nós sempre venceremos a guerra, ao final!!
Com as últimas forças sobre humanas que lhe restavam, Agripa levantou-se em meio à trilha e começou a correr, sempre em frente. Queria vislumbrar a vitória final de Roma sobre o mundo conhecido, o apogeu do Império Universal, um imperium sine fine.
Ele sabia agora que Aníbal seria derrotado por certo Cipião, sabia também que Cartago cairia perante as forças romanas, sendo engolida pela língua de fogo de sua própria hybris.
Sim, mas ele queria vislumbrar mais, queria conhecer a força daquele Império invencível, sentir cada momento inebriante da vitória. Observar a conquista da Grécia, da Hispânia, da Macedônia, do Egito e do Oriente Antigo, quem sabe da Britânia, tão longe e inóspita.
De súbito, ele estacou. Lembrou das palavras do romano, em cima do cavalo, diante de Cartago. Estás vendo Políbio? Cartago, em chamas. Só temo que um dia seja a vez de Roma. Queira os deuses que eu, Cipião Emiliano morra antes de minha Roma arder nas chamas de sua própria destruição, tal como os púnicos, outrora invencíveis estão vendo agora sua Cartago.
Palavras sábias ou apenas temores infundados?
E se o destino e a fortuna caminhavam sempre para um mesmo fim, tal como estava escrito nas histórias de Heródoto?
E se o destino de todas as cidades e Impérios fossem suas respectivas destruições, tal como outrora, o Império do grandioso Alexandre?
Menênio Agripa estacou e fechou os olhos. Negou-se a caminhar novamente, decidindo voltar ao presente, onde o espírito romano estava alquebrado em meio à planície de Canae, ainda que provisoriamente. Ele decidiu que viveria o presente, sabendo que após aquele momento de derrota, Roma triunfaria.
O futuro distante? Agripa se negava a conhecer. Assim, não veria a queda do Império Romano perante os povos germanos do norte, no distante século V d.C.
A Trilha do Tempo desapareceu e Menênio Agripa permaneceu em meio aos corpos da derrota romana de Canae.
Ah, mas pensando bem… Que bela derrota fora aquela!!

Sobre textos e contextos
Por Marco Antônio Collares
O conto se passa em dois momentos diferentes da história de Roma. Iniciando na Segunda Guerra Púnica (218 – 202 a.C), quando as forças de Aníbal invadiram a Itália, com forças vindas da Espanha e da Numídia, no norte da África. Não devemos esquecer que a famosa batalha de Canae, mencionada no conto, foi real, por se tratar de uma aula de estratégia, na qual o cartaginês esmagou 80 mil romanos. Aníbal poderia ter invadido Roma logo após, mas negou-se a isso, preferindo percorrer a Itália de modo a enfraquecer ainda mais uma cidade já vencida. 
A máxima de Asdrúbal (não o irmão de Aníbal, mas um general), de que “ele sabia vencer uma batalha, mas não a guerra” foi narrada por Políbio, que escreveu a história da guerra. Caminhando na trilha, o personagem do conto entra em outro tempo, na Terceira Guerra Púnica (149 – 146 a.C), quando as forças romanas de Cipião Emiliano destruíram e incendiaram a cidade inimiga. O diálogo entre Cipião e o já mencionado historiador grego, Políbio é narrado por Catão e Varrão (autores do século II e I a.C, respectivamente). Importante mencionar que o conto é cheio de referências da sociedade, da história e da mentalidade romana. São elas:
“Na defesa de nossos maiores” era uma referência comum, significando a defesa dos costumes ancestrais, o mos maiorum, ou mores, de onde advém a palavra moral.
O ditador Fábius Máximus realmente existiu. Sua tática era simples; evitar confrontos diretos com Aníbal para enfraquecê-lo, afinal ele estava na Itália, terra romana, cheia de aliados romanos.
Os númidas, constantemente mencionados no conto eram parte da cavalaria cartaginesa. Eram negros africanos da Numídia, ao lado da região da Tunísia atual, onde ficava Cartago. Eram excelentes lanceiros e foram essenciais na batalha de Canae, contendo a cavalaria romana nas pontas da formação de ataque, de modo ao sucesso do cerco empreendido por Aníbal.
nobilitas era a elite patrício-plebeia formada ao longo dos séculos V – III a.C, com o casamento misto entre patrícios e plebeus, em sua maioria, ricos comerciantes.
As insulae, mencionadas no texto eram pequenos apartamentos locados para os pobres de Roma, normalmente insalubres e feitos de madeira, pegando fogo constantemente. Uma verdadeira ratoeira humana na periferia romana, onde os pobres moravam e onde os ricos ganhavam dinheiro fácil com aluguéis baratos.
O termo Cidade Eterna fazia parte de uma tradição referendada por Políbio, assim como o termo Imperio sine fine. No primeiro caso, Políbio afirmava o sucesso da constituição mista romana, baseada na mistura da monarquia, aristocracia e democracia, com seus magistrados, senado e assembleias, o segundo referendava a ideia de expansão contínua do Império.
Por fim, Próculo e o destino manifesto aparecem na tradição escrita de Virgílio e Tito Lívio. Tratar-se-ia do último cidadão a vislumbrar o rei lendário, Rômulo, antes de ele ascender à divindade e se tornar o deus Quirino, ou Jano Quirino, o deus das portas e passagens. Quando Roma estava em guerra, as portas de seus templos estavam abertas, o que fortalecia a ideia de uma cidade belicosa e que estava destinada a conquistar outros povos, segundo a tradição oral e escrita imperial.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Algumas considerações sobre Histórias em Quadrinhos





No decorrer dos últimos meses me dediquei à leituras especializadas e cursos teóricos sobre Histórias em Quadrinhos (Comics Book) e agora faço algumas considerações gerais sobre o assunto:

- As obras "Narrativas Gráficas" de Will Eisner e "Desvendando os Quadrinhos", de Scott MacCloud são essenciais para uma definição segura do que seja essa forma de mídia e comunicação. O primeiro autor trata as HQs como "artes sequenciais", ou seja, "imagens dispostas em sequência" e, em outro momento especifica um pouco mais tal definição ao afirmar que tratam-se de "narrativas gráficas", ou seja, formas de "narração baseadas em imagens de modo a transmitir idéias e comunicar uma história". Já o segundo autor tece uma definição mais específica ainda, tratando as HQs como "imagens pictóricas e outras justapostas em sequência deliberada, destinadas a transmitir informações ou produzir uma reposta no espectador/leitor". Em outras palavras, as HQs seriam como que "recipientes midiáticos" que podem conter diversas idéias, imagens, temas, conteúdos, estilos e técnicas narrativas/artísticas, o que desde já desconstrói a opinião corrente de que possuem relação direta com certos temas específicos, como de super heróis ou de "animaizinhos" engraçados e afins. Apesar de muitas HQs possuírem tais conteúdos temáticos, não significa que se resumem a isso.

- As opiniões depreciativas do público em geral sobre as HQs possuem diferentes causas, desde a ignorância de muitas pessoas sobre o que realmente seria tal veículo de comunicação e de manifestação artística até certos posicionamentos preconceituosos de educadores e "especialistas em juventude e adolescência" que, no decorrer das seis primeiras décadas do século XX, consideraram as HQs como sendo "vulgares, estúpidas, moralmente condenáveis e/ou como a expressão do baixo senso intelectual daqueles que não gostavam de livros". Além disso, os leitores de HQs eram considerados jovens incapazes cognitivamente e, por isso, facilmente "manipuláveis diante de imagens de cores berrantes, rostos disformes e esgares contorcidos de ódio e terror, uma forma de manifestação que careceria de senso estilístico e gramatical". Tais opiniões pejorativas e preconceituosas, extraídas do estudo de um pesquisador chamado Thierry Groensteen foram sintetizadas na impactante e absurda obra, "Seduction of the Innocents", do psicólogo Fredric Wertham, publicada em 1954. O autor da obra, inserida no contexto do macartismo (comissão no senado dos EUA presidida pelo senador Joseph MacCarthy para investigar e julgar adeptos, partidários e simpatizantes do comunismo) estaria preocupado com a delinquência juvenil e com as influências nefastas de certos bens culturais midiáticos na moral tradicional estadunidense da época, o que levou a indústria das HQs à defensiva, condicionando a criação do chamado Comics Code pela mesma. 

- Agora, a forma pejorativa como muitos pesquisadores e especialistas das ciências das humanidades trataram os quadrinhos até a década de 1960 têm relação direta com suas posições conceituais em torno da existência de uma cultura de elite em oposição a uma cultura popular, normalmente vinculada a cultura de massa. Para resumir, é como se os artefatos culturais voltados para o homem comum, do povo, fossem de baixa qualidade, quando não constituídos para a total alienação dos receptores de bens culturais, com fins ideológicos ou mesmo econômicos, dentro do processo de  mercantilização e massificação da cultura ocorrido no século XX. Alguns expoentes da Escola de Frankfurt e também alguns pensadores marxistas expressaram posições que dicotomizaram a cultura, preocupando-se com os processos de alienação e dominação ideológica das massas via produção e difusão de bens culturais voltados para tais setores subalternos da sociedade (um viés importante, mas que acabou gerando tal visão hermética e unilateral das mídias em geral e dos quadrinhos em particular). Indiretamente ou não, as HQs, consumidas por milhares de jovens a partir da década de 1930, acabaram sendo depreciadas, tanto como produtos massificados da ideologia dominante, assim como bens produzidos para fins exclusivos de lucro e acumulo de riqueza de uma pujante e inovadora indústria cultural.

- Podemos traçar aqui dois tipos de leituras teóricas distintas sobre os produtos massificados da indústria cultural, incluindo os quadrinhos, e isso, a partir das explanações do filósofo Douglas Kellner sobre o que denomina de Cultura da Mídia. 

- Por um lado temos leituras de alguns expoentes da Escola de Frankfurt (principalmente Theodor Adorno), que consideraram os produtos da indústria cultural (termo cunhado pelos pensadores dessa escola teórica) como expressões da dominação de classe e/ou da alienação das massas. Por outro lado, temos os chamados Estudos Culturais Britânicos, que procuraram compreender a dialética intrínseca existente nesses produtos massificados, suas formas de alienação e ao mesmo tempo os posicionamentos críticos intrínsecos nos mesmos, ou seja, a expressão dos conflitos culturais e políticos existentes em nossa sociedade. 

- É possível traçar opiniões dicotômicas sobre bens culturais em dois estudiosos específicos da cultura, o primeiro, Edgar Morin, que relaciona a cultura de massas à indústria cultural para fins exclusivos de lucros rápidos em detrimento da cultura popular genuína e o segundo, Nestor Garcia Canclini, que considera existir uma hibridização entre a cultura de massas e a cultura popular, sendo a primeira, um produto cultural consumido em razão de ecoar visões de mundo em amplos setores da sociedade contemporânea, porque mesclada ao popular, ela se faz entender pelos receptores de bens culturais, podendo auxiliar, inclusive na formação crítica e da cidadania dos mesmos, uma visão que se distancia da opinião corrente de que tudo o que é voltado para o povo significa alienação.

- É possível trazer aqui um exemplo bastante peculiar, relacionado a Marvel Comics, uma das grandes empresas de quadrinhos de super heróis dos séculos XX e XXI e isso a partir da obra, "Marvel Comics, a História Secreta", de Sean Howe. Quando foi rearticulada em 1961 pelo escritor, roteirista e editor Stan Lee e pelo desenhista e criador, Jacky Kirby, a Marvel se tornou uma espécie de "Casa das Idéias" de novos artistas, inovando o gênero dos super heróis nos EUA e no mundo. Isso ocorreu porque os artistas da empresa colocaram em cena narrativas antenadas com o contexto de seus leitores, gerando identidade nos mesmos em relação a heróis adolescentes ou mesmo aproximados das pessoas reais e que, tal como qualquer pessoa, tinham problemas semelhantes aos do homem comum das grandes cidades dos EUA.

- Com o tempo, porém, o espírito criativo foi entrando em conflito com o espírito corporativo, ocorrendo uma expansão gradual da linha de super heróis Marvel e dos lucros das empresas que gerenciavam a linha editorial de super heróis (ao longo das três primeiras décadas de reformulação, a Marvel passou por três empresas diferentes). Nos anos 70  e 80, certa independência dos artistas e editores-artistas geravam narrativas bastante engajadas, críticas e inovadoras (as narrativas cósmicas de Jim Starlin, por exemplo fugiam a qualquer espírito corporativo que tivesse preocupações exclusivas com os lucros imediatos) ao mesmo tempo em que foram sendo controladas pelo corpo editorial, agora centralizado nas mãos de Jim Shooter. 

- No final dos anos 1980 e início dos anos 1990 as coisas mudaram mais radicalmente aina, visto que os próprios artistas, agora verdadeiras celebridades do meio, começaram a não se preocupar mais tanto assim com a qualidade das narrativas, mas sim com desenhos multi cromáticos e detalhistas e ações impactantes que gerassem nos leitores o fascínio pelas HQs, incrementando assim a mercantilização por parte de colecionadores e/ou especuladores do gênero. Artistas como Todd MacFarlane e Rob Liefeld não precisaram de ordens de cima para se desvencilharem daquele espírito crítico e dinâmico da Casa das Ideias dos anos 60,70 e início dos 80. Eles simplesmente foram se inserindo no esquema dos especuladores de HQs cromáticas, com capas e artes detalhadas ao extremo e histórias cheias de ação gratuita e vazias, quase que pasteurizadas. Ainda assim, bons arcos podiam aparecer na Marvel e nada era arquitetadamente pensado para alienar ou mesmo para gerar convulsões sociais entre os jovens leitores. Os lucros sempre fizeram parte do esquema, desde os anos 1960 (até antes disso, nos tempos da Timely Comics) e não afetaram diretamente as boas idéias dos artistas da empresa nas primeiras décadas de reformulação Marvel, ainda que por causa de direitos autorais, muitos desses artistas tenham se desentendido com a Marvel ao longo dos anos.

- Agora, importante mencionar que existem no Brasil diversos especialistas em HQs, todos eles referências para qualquer estudioso que pretenda seguir por essa seara. Nomes como de Álvaro de Moya, Antônio Luiz Cagnin, Zilda Augusto Anselmo, Waldomiro Vergueiro, Sérgio Augusto e Moacy Cirne devem ser listados nas bibliografias de qualquer trabalho, sendo que todos eles possuem trabalhos sérios que são facilmente encontrados na internet. Em um artigo recente, Vegueiro específica os tipos de estudos acadêmicos existentes sobre quadrinhos na USP e sua classificação pode auxiliar quaisquer novos pretendentes a pesquisadores. 

- Em primeiro lugar existem aqueles estudos que tratam da linguagem das HQs, a forma como são constituídos, com seu tempo espacializado, sua elipse narrativa, as formas de enquadramento e de perspectivas, as representações de sons, chamadas de onomatopeias, as linhas cinéticas que dão movimento as imagens e até mesmo, o estudo da "sarjeta", o espaço vazio dos quadros que serve à elipse narrativa, onde os leitores interagem com o escritor para dar continuidade e significados as sequências dispostas. Em segundo lugar podemos elencar a análise de conteúdos, ou seja, os significados presentes nas HQs, bem como os processos de codificação das mensagens nas mesmas. Em terceiro lugar, temos as análises históricas das HQs, quando foram produzidas, publicadas e distribuídas e as relações com seus respectivos contextos históricos, o que seria a análise das conjunturas, do levantamento das publicações e da recuperação da memória das narrativas, dos artistas e seus editores. Em quarto lugar, elencamos a análise das sociedades e culturas subjacentes as produções de HQs, que seria uma abordagem relacionada a temas comuns presentes nas HQs e em nossa sociedade e cultura, tais como, violência urbana, guerra, racismo, sexismo, feminismo, xenofobia, etc. Seguindo aqui as premissas do historiador Paul Veyne, todo estudo histórico é igualmente sociológico, significando que a perspectiva histórica e sociológica se interpenetram. Outras formas de leituras seriam a análise técnica e estética das HQs, as formas de aplicações práticas em marketing, bem como as análises de recepção, ou seja, como as histórias foram lidas e quais as reações do público ante as mesmas (essa tarefa é facilitada hoje em dia devido a internet e os blogs especializados, onde os leitores tecem comentários sobre o que foi publicado). Isso sem falar nos estudos sobre a economia das HQs, as tendências de mercado, os tipos de público para cada gênero, suas segmentações.

- Colocaria aqui mais um tipo de estudos que me interesso sobremaneira, os estudos sobre os "usos do passado", ou seja. estudos sobre o contexto histórico de produção e difusão de algum arco ou histórica que tenha um passado histórico qualquer como tema (por exemplo, a famosa obra Astérix, que trata da conquista das Gálias por César no século I a.C) o que sugere uma análise sobre a forma como é representado esse passado no mundo contemporâneo.

- Para finalizar, gostaria de tecer alguns comentários sobre Alan Moore, famoso escritor inglês que legou ao mundo HQs do porte de Watchmen, V de Vingança, A Liga Extraordinária, Do Inferno, Promethea, e tantas outras. Após observar atentamente seus comentários no documentário "The Mindscape of Alan Moore" percebo que sua obra, Promethea é a expressão mais genuína daquilo que ele define como arte e magia. O que me impressiona em Moore, além de sua erudição é o fato dele vincular arte com magia, como se a arte fosse a elevação do homem para outro nível de consciência, como se o artista, inspirado por forças mágicas, pudesse, com seus artefatos culturais, moldar, transformar o nível de consciência dos indivíduos de modo a que esses transformem a realidade a sua volta, adquirindo uma consciência igualmente mística, tocando o mundo sobrenatural com tal consciência. 

- Para muitos críticos das opiniões dele, isso parece pura insanidade embebida em drogas, mas Moore reinterpreta, por meio de seus conhecimentos e releituras de Ocultismo, da Kabhala, de Exoterismo, o que pensavam os antigos poetas aedos gregos ou mesmo os bardos celtas, que concebiam sua poesia como a inspiração das musas e das forças primordiais, com se fossem tocados pela luz da verdade. Como bem reitera o estudioso Marcel Detienne ao tratar do pensamento mítico entre os gregos antigos, a aletheia significaria verdade, a luz que ilumina o homem com a inspiração das musas, que tira os entraves da ignorância e da escuridão, da lethe. Para os aedos a arte servia para a inspiração e a elevação do pensamento humano. Se Moore tem alguma leitura teórica é difícil afirmar (acredito que sim), mas com certeza seu conhecimento empírico, embebido pela literatura, filosofia e pela mitologia (a partir das premissas de Joseph Campbel, presumo) fizeram com que ele se veja como um poeta dos quadrinhos, o que estaria próximo das artes da magia. 

- O fato dele se ver como um mago leva muitas pessoas a taxarem-no de louco, mas a magia para ele seria a arte que inspira e toca a consciência do público e isso, para os grandes filósofos gregos (como Aristóteles) era o dever da poesia, inspirar e colocar as grandes questões existenciais em pauta. Só para fechar. Moore chega a dizer no documentário que mitologia é uma forma de linguagem complexa (e quanto mais deuses, mais complexa), uma ideia encontrada em pensadores como Roland Barthes e Juanito de Souza Brandão. Se ele leu os dois pensadores, não sei afirmar, mas ele expressa ideias bastante ricas e isso mostra que sua obra não é apenas um punhado de tinta e letrinhas psicodélicas sobre papel. Se pararmos para pensar em tudo isso, podemos afirmar então que os quadrinhos possuem um alto grau de abstração e sabedoria de vida, tal como seriam os mitos para Campbell, claro, se bem escritos, elaborados e articulados.