quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Algumas considerações sobre Histórias em Quadrinhos





No decorrer dos últimos meses me dediquei à leituras especializadas e cursos teóricos sobre Histórias em Quadrinhos (Comics Book) e agora faço algumas considerações gerais sobre o assunto:

- As obras "Narrativas Gráficas" de Will Eisner e "Desvendando os Quadrinhos", de Scott MacCloud são essenciais para uma definição segura do que seja essa forma de mídia e comunicação. O primeiro autor trata as HQs como "artes sequenciais", ou seja, "imagens dispostas em sequência" e, em outro momento especifica um pouco mais tal definição ao afirmar que tratam-se de "narrativas gráficas", ou seja, formas de "narração baseadas em imagens de modo a transmitir idéias e comunicar uma história". Já o segundo autor tece uma definição mais específica ainda, tratando as HQs como "imagens pictóricas e outras justapostas em sequência deliberada, destinadas a transmitir informações ou produzir uma reposta no espectador/leitor". Em outras palavras, as HQs seriam como que "recipientes midiáticos" que podem conter diversas idéias, imagens, temas, conteúdos, estilos e técnicas narrativas/artísticas, o que desde já desconstrói a opinião corrente de que possuem relação direta com certos temas específicos, como de super heróis ou de "animaizinhos" engraçados e afins. Apesar de muitas HQs possuírem tais conteúdos temáticos, não significa que se resumem a isso.

- As opiniões depreciativas do público em geral sobre as HQs possuem diferentes causas, desde a ignorância de muitas pessoas sobre o que realmente seria tal veículo de comunicação e de manifestação artística até certos posicionamentos preconceituosos de educadores e "especialistas em juventude e adolescência" que, no decorrer das seis primeiras décadas do século XX, consideraram as HQs como sendo "vulgares, estúpidas, moralmente condenáveis e/ou como a expressão do baixo senso intelectual daqueles que não gostavam de livros". Além disso, os leitores de HQs eram considerados jovens incapazes cognitivamente e, por isso, facilmente "manipuláveis diante de imagens de cores berrantes, rostos disformes e esgares contorcidos de ódio e terror, uma forma de manifestação que careceria de senso estilístico e gramatical". Tais opiniões pejorativas e preconceituosas, extraídas do estudo de um pesquisador chamado Thierry Groensteen foram sintetizadas na impactante e absurda obra, "Seduction of the Innocents", do psicólogo Fredric Wertham, publicada em 1954. O autor da obra, inserida no contexto do macartismo (comissão no senado dos EUA presidida pelo senador Joseph MacCarthy para investigar e julgar adeptos, partidários e simpatizantes do comunismo) estaria preocupado com a delinquência juvenil e com as influências nefastas de certos bens culturais midiáticos na moral tradicional estadunidense da época, o que levou a indústria das HQs à defensiva, condicionando a criação do chamado Comics Code pela mesma. 

- Agora, a forma pejorativa como muitos pesquisadores e especialistas das ciências das humanidades trataram os quadrinhos até a década de 1960 têm relação direta com suas posições conceituais em torno da existência de uma cultura de elite em oposição a uma cultura popular, normalmente vinculada a cultura de massa. Para resumir, é como se os artefatos culturais voltados para o homem comum, do povo, fossem de baixa qualidade, quando não constituídos para a total alienação dos receptores de bens culturais, com fins ideológicos ou mesmo econômicos, dentro do processo de  mercantilização e massificação da cultura ocorrido no século XX. Alguns expoentes da Escola de Frankfurt e também alguns pensadores marxistas expressaram posições que dicotomizaram a cultura, preocupando-se com os processos de alienação e dominação ideológica das massas via produção e difusão de bens culturais voltados para tais setores subalternos da sociedade (um viés importante, mas que acabou gerando tal visão hermética e unilateral das mídias em geral e dos quadrinhos em particular). Indiretamente ou não, as HQs, consumidas por milhares de jovens a partir da década de 1930, acabaram sendo depreciadas, tanto como produtos massificados da ideologia dominante, assim como bens produzidos para fins exclusivos de lucro e acumulo de riqueza de uma pujante e inovadora indústria cultural.

- Podemos traçar aqui dois tipos de leituras teóricas distintas sobre os produtos massificados da indústria cultural, incluindo os quadrinhos, e isso, a partir das explanações do filósofo Douglas Kellner sobre o que denomina de Cultura da Mídia. 

- Por um lado temos leituras de alguns expoentes da Escola de Frankfurt (principalmente Theodor Adorno), que consideraram os produtos da indústria cultural (termo cunhado pelos pensadores dessa escola teórica) como expressões da dominação de classe e/ou da alienação das massas. Por outro lado, temos os chamados Estudos Culturais Britânicos, que procuraram compreender a dialética intrínseca existente nesses produtos massificados, suas formas de alienação e ao mesmo tempo os posicionamentos críticos intrínsecos nos mesmos, ou seja, a expressão dos conflitos culturais e políticos existentes em nossa sociedade. 

- É possível traçar opiniões dicotômicas sobre bens culturais em dois estudiosos específicos da cultura, o primeiro, Edgar Morin, que relaciona a cultura de massas à indústria cultural para fins exclusivos de lucros rápidos em detrimento da cultura popular genuína e o segundo, Nestor Garcia Canclini, que considera existir uma hibridização entre a cultura de massas e a cultura popular, sendo a primeira, um produto cultural consumido em razão de ecoar visões de mundo em amplos setores da sociedade contemporânea, porque mesclada ao popular, ela se faz entender pelos receptores de bens culturais, podendo auxiliar, inclusive na formação crítica e da cidadania dos mesmos, uma visão que se distancia da opinião corrente de que tudo o que é voltado para o povo significa alienação.

- É possível trazer aqui um exemplo bastante peculiar, relacionado a Marvel Comics, uma das grandes empresas de quadrinhos de super heróis dos séculos XX e XXI e isso a partir da obra, "Marvel Comics, a História Secreta", de Sean Howe. Quando foi rearticulada em 1961 pelo escritor, roteirista e editor Stan Lee e pelo desenhista e criador, Jacky Kirby, a Marvel se tornou uma espécie de "Casa das Idéias" de novos artistas, inovando o gênero dos super heróis nos EUA e no mundo. Isso ocorreu porque os artistas da empresa colocaram em cena narrativas antenadas com o contexto de seus leitores, gerando identidade nos mesmos em relação a heróis adolescentes ou mesmo aproximados das pessoas reais e que, tal como qualquer pessoa, tinham problemas semelhantes aos do homem comum das grandes cidades dos EUA.

- Com o tempo, porém, o espírito criativo foi entrando em conflito com o espírito corporativo, ocorrendo uma expansão gradual da linha de super heróis Marvel e dos lucros das empresas que gerenciavam a linha editorial de super heróis (ao longo das três primeiras décadas de reformulação, a Marvel passou por três empresas diferentes). Nos anos 70  e 80, certa independência dos artistas e editores-artistas geravam narrativas bastante engajadas, críticas e inovadoras (as narrativas cósmicas de Jim Starlin, por exemplo fugiam a qualquer espírito corporativo que tivesse preocupações exclusivas com os lucros imediatos) ao mesmo tempo em que foram sendo controladas pelo corpo editorial, agora centralizado nas mãos de Jim Shooter. 

- No final dos anos 1980 e início dos anos 1990 as coisas mudaram mais radicalmente aina, visto que os próprios artistas, agora verdadeiras celebridades do meio, começaram a não se preocupar mais tanto assim com a qualidade das narrativas, mas sim com desenhos multi cromáticos e detalhistas e ações impactantes que gerassem nos leitores o fascínio pelas HQs, incrementando assim a mercantilização por parte de colecionadores e/ou especuladores do gênero. Artistas como Todd MacFarlane e Rob Liefeld não precisaram de ordens de cima para se desvencilharem daquele espírito crítico e dinâmico da Casa das Ideias dos anos 60,70 e início dos 80. Eles simplesmente foram se inserindo no esquema dos especuladores de HQs cromáticas, com capas e artes detalhadas ao extremo e histórias cheias de ação gratuita e vazias, quase que pasteurizadas. Ainda assim, bons arcos podiam aparecer na Marvel e nada era arquitetadamente pensado para alienar ou mesmo para gerar convulsões sociais entre os jovens leitores. Os lucros sempre fizeram parte do esquema, desde os anos 1960 (até antes disso, nos tempos da Timely Comics) e não afetaram diretamente as boas idéias dos artistas da empresa nas primeiras décadas de reformulação Marvel, ainda que por causa de direitos autorais, muitos desses artistas tenham se desentendido com a Marvel ao longo dos anos.

- Agora, importante mencionar que existem no Brasil diversos especialistas em HQs, todos eles referências para qualquer estudioso que pretenda seguir por essa seara. Nomes como de Álvaro de Moya, Antônio Luiz Cagnin, Zilda Augusto Anselmo, Waldomiro Vergueiro, Sérgio Augusto e Moacy Cirne devem ser listados nas bibliografias de qualquer trabalho, sendo que todos eles possuem trabalhos sérios que são facilmente encontrados na internet. Em um artigo recente, Vegueiro específica os tipos de estudos acadêmicos existentes sobre quadrinhos na USP e sua classificação pode auxiliar quaisquer novos pretendentes a pesquisadores. 

- Em primeiro lugar existem aqueles estudos que tratam da linguagem das HQs, a forma como são constituídos, com seu tempo espacializado, sua elipse narrativa, as formas de enquadramento e de perspectivas, as representações de sons, chamadas de onomatopeias, as linhas cinéticas que dão movimento as imagens e até mesmo, o estudo da "sarjeta", o espaço vazio dos quadros que serve à elipse narrativa, onde os leitores interagem com o escritor para dar continuidade e significados as sequências dispostas. Em segundo lugar podemos elencar a análise de conteúdos, ou seja, os significados presentes nas HQs, bem como os processos de codificação das mensagens nas mesmas. Em terceiro lugar, temos as análises históricas das HQs, quando foram produzidas, publicadas e distribuídas e as relações com seus respectivos contextos históricos, o que seria a análise das conjunturas, do levantamento das publicações e da recuperação da memória das narrativas, dos artistas e seus editores. Em quarto lugar, elencamos a análise das sociedades e culturas subjacentes as produções de HQs, que seria uma abordagem relacionada a temas comuns presentes nas HQs e em nossa sociedade e cultura, tais como, violência urbana, guerra, racismo, sexismo, feminismo, xenofobia, etc. Seguindo aqui as premissas do historiador Paul Veyne, todo estudo histórico é igualmente sociológico, significando que a perspectiva histórica e sociológica se interpenetram. Outras formas de leituras seriam a análise técnica e estética das HQs, as formas de aplicações práticas em marketing, bem como as análises de recepção, ou seja, como as histórias foram lidas e quais as reações do público ante as mesmas (essa tarefa é facilitada hoje em dia devido a internet e os blogs especializados, onde os leitores tecem comentários sobre o que foi publicado). Isso sem falar nos estudos sobre a economia das HQs, as tendências de mercado, os tipos de público para cada gênero, suas segmentações.

- Colocaria aqui mais um tipo de estudos que me interesso sobremaneira, os estudos sobre os "usos do passado", ou seja. estudos sobre o contexto histórico de produção e difusão de algum arco ou histórica que tenha um passado histórico qualquer como tema (por exemplo, a famosa obra Astérix, que trata da conquista das Gálias por César no século I a.C) o que sugere uma análise sobre a forma como é representado esse passado no mundo contemporâneo.

- Para finalizar, gostaria de tecer alguns comentários sobre Alan Moore, famoso escritor inglês que legou ao mundo HQs do porte de Watchmen, V de Vingança, A Liga Extraordinária, Do Inferno, Promethea, e tantas outras. Após observar atentamente seus comentários no documentário "The Mindscape of Alan Moore" percebo que sua obra, Promethea é a expressão mais genuína daquilo que ele define como arte e magia. O que me impressiona em Moore, além de sua erudição é o fato dele vincular arte com magia, como se a arte fosse a elevação do homem para outro nível de consciência, como se o artista, inspirado por forças mágicas, pudesse, com seus artefatos culturais, moldar, transformar o nível de consciência dos indivíduos de modo a que esses transformem a realidade a sua volta, adquirindo uma consciência igualmente mística, tocando o mundo sobrenatural com tal consciência. 

- Para muitos críticos das opiniões dele, isso parece pura insanidade embebida em drogas, mas Moore reinterpreta, por meio de seus conhecimentos e releituras de Ocultismo, da Kabhala, de Exoterismo, o que pensavam os antigos poetas aedos gregos ou mesmo os bardos celtas, que concebiam sua poesia como a inspiração das musas e das forças primordiais, com se fossem tocados pela luz da verdade. Como bem reitera o estudioso Marcel Detienne ao tratar do pensamento mítico entre os gregos antigos, a aletheia significaria verdade, a luz que ilumina o homem com a inspiração das musas, que tira os entraves da ignorância e da escuridão, da lethe. Para os aedos a arte servia para a inspiração e a elevação do pensamento humano. Se Moore tem alguma leitura teórica é difícil afirmar (acredito que sim), mas com certeza seu conhecimento empírico, embebido pela literatura, filosofia e pela mitologia (a partir das premissas de Joseph Campbel, presumo) fizeram com que ele se veja como um poeta dos quadrinhos, o que estaria próximo das artes da magia. 

- O fato dele se ver como um mago leva muitas pessoas a taxarem-no de louco, mas a magia para ele seria a arte que inspira e toca a consciência do público e isso, para os grandes filósofos gregos (como Aristóteles) era o dever da poesia, inspirar e colocar as grandes questões existenciais em pauta. Só para fechar. Moore chega a dizer no documentário que mitologia é uma forma de linguagem complexa (e quanto mais deuses, mais complexa), uma ideia encontrada em pensadores como Roland Barthes e Juanito de Souza Brandão. Se ele leu os dois pensadores, não sei afirmar, mas ele expressa ideias bastante ricas e isso mostra que sua obra não é apenas um punhado de tinta e letrinhas psicodélicas sobre papel. Se pararmos para pensar em tudo isso, podemos afirmar então que os quadrinhos possuem um alto grau de abstração e sabedoria de vida, tal como seriam os mitos para Campbell, claro, se bem escritos, elaborados e articulados.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

O Império Romano e a história de sua aparente invencibilidade:percursos e percalços - Parte I



Normalmente nos deparamos com idéias consolidadas sobre alguns fatos da história ou mesmo sobre as características de certas sociedades ou "civilizações". O Império Romano costuma gerar interesse entre nós por vários motivos: por sua aparente estabilidade político-militar, pela ostentação de seu poder frente aos povos conquistados, pelo pragmatismo de seus líderes, pensadores e políticos, pela eficácia de suas legiões e pela capacidade estratégica de seus comandantes militares, tais como Júlio César, Cneu Pompeu, Marco Antonio ou Caio Otávio (Augusto).

Tal Império representa para nós um exemplo aparentemente bem sucedido da capacidade do Ocidente em expandir sua própria cultura, seus valores e sua organização político-social, como se nós fossemos os herdeiros diretos dos romanos, uma visão bastante comum entre os líderes e até entre os povos de "Impérios Modernos", tais como entre os nazistas de Hitler (quem esqueceria da aquila, a águia nazista utilizada também pelas legiões romanas, símbolo de Júpiter Capitolino?) e os fascista de Mussolini (e a palavra fascismo não advém de fasces, símbolo de autoridade dos lictores romanos, espécie de guardas pessoais dos cônsules?).


O problema é que tal visão carece de uma leitura crítica, visto que parte do pressuposto de que o imperialismo romano foi bem sucedido em todos os momentos da história de Roma ou que sempre existiu desde a gênese da cidade (Urbe), no ano de 753 a.C. Além disso, costumamos tratar Roma por aquilo que se tornou após séculos de história, esquecendo-nos de todos os percursos e percalços existentes ao longo de sua trajetória de conquistas, percalços esses que quase levaram a capital dos romanos a sua própria destruição.


Não podemos esquecer que a própria tradição escrita romana - incluindo as obras do primeiro historiador latino, Fábio Pictor (III a.C), do autor grego, Políbio (II a.C), do historiador analista, Tito Lívio (I a.C - I d.C) ou mesmo do poeta,Virgílio (I a.C) - relata que a cidade, após ser governada por Rômulo, seu fundador lendário - depois Numa Pompílio, Tulo Hostílio e Anco Márcio - foi dominada por reis etruscos, a saber; Tarquínio Prisco, o Antigo, Sérvio Túlio (escravo do primeiro, de onde deriva a palavra servus) e Tarquínio, o Soberbo.


A tradição escrita defende que estes reis etruscos teriam sido escolhidos pelo senado romano e pelo povo (populus) nas famosas assembleias curiatas, mas hoje em dia sabemos que a região da Etrúria, situada ao norte do Lácio, tinha muita influência sobre Roma e as demais cidades da antiga Confederação Latina, chegando a dominar a região de modo a difundir sua própria cultura aos romanos  - os chamados triunfos, as demais procissões religiosas, as festas da fertilidade e o cargo de Pontífice Máximo são apenas alguns exemplos de elementos etruscos adotados pelos romanos diante desta hegemonia etrusca sobre o Lácio.


Afresco Etrusco datado de 450 a.C. Em seus primeiros anos, a cultura etrusca (em contatos com a cultura dos gregos) exerceu influência sobre Roma. Cidades como Veios, na Etrúria, eram mais poderosas e ricas do que Roma entre os séculos VII e V a.C,o que pode ser comprovado pelo fato da própria tradição escrita romana afirmar que sua Urbe foi governada por três reis etruscos antes da instituição da República."



Após a expulsão dos reis etruscos pelas elites latinas do senado e após a instituição de várias magistraturas superiores (consulado, pretura) em substituição ao cargo de rei, Roma envolveu-se em uma grande guerra contra as cidades etruscas, sendo Veios a principal adversária dos romanos no século V a.C. A vitória foi custosa, durante dez anos de cerco a Veios, mas significando o primeiro momento de expansão do poderio romano para além do Lácio, já conquistado em guerras anteriores contra latinos e sabinos. Assim sendo, Roma tornava-se um pólo de atração de pessoas oriundas das mais diferentes regiões da Itália, o que elevou o número de plebeus no interior da cidade (os não patrícios, estes últimos constituindo os filhos dos 100 patres conscripti originais, os primeiros senadores).


Porém, devido a longa guerra contra os etruscos, Roma enfraqueceu-se militarmente, surgindo um novo percalço em sua expansão pela península itálica: os gauleses. Vindos do norte, do Vale do Pó e das regiões transalpinas (além dos Alpes), levas de tribos gaulesas adentraram na Itália, ocasionando pilhagens em várias cidades da Etrúria e do Lácio.


No ano de 390 a.C , os chamados "celtas franceses", liderados por certo Breno aproveitaram-se de uma brecha das defesas de Roma e do fato da maior parte das legiões estarem longe da cidade a procura dos próprios invasores, para tomarem a Urbe de assalto, ficando na cidade por quase sete meses, pilhando e festejando sua vitória.


A tradição escrita romana não nega o fato, afirmando que os romanos foram vencidos por sua própria "arrogância e ganância", alguns líderes do senado abrigados na cidadela do Fórum, enquanto os gauleses "humilhavam" os demais senadores aprisionados na cidade. Afirmam alguns autores que o líder gaulês, Breno cobrou um resgate para abandonar a cidade, e que o elevado resgate cobrado teria irritado os "arrogantes cativos". A resposta de Breno teria sido lendária, jogando sua espada na balança que pesava a quantidade de prata e ouro para o resgate exigido.


Em suma, mesmo após a saída dos gauleses e após a reconstrução de sua cidade, o chamadoSaque Gaulês ainda era lembrado pelos autores romanos posteriores como uma das derrotas mais vergonhosas sofridas por sua República Imperial. Mas o pior ainda estava por vir. Logo, duas invasões abalariam a Itália de modo a quase levar Roma a sua destruição, a guerra contra o rei epirota (do Épiro, região da Grécia), Pirro e contra os cartagineses de Aníbal, um dos mais bem sucedidos comandantes da antiguidade.


Continua.

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Batman e seu pretenso realismo



Em primeiro lugar, gostaria de enfatizar que gosto do personagem criado por Bob Kane, que por muito tempo li e reli HQs de Batman, sejam aqueles da cronologia, escritas por roteiristas do porte de Denis O'Neil, sejam os famosos, "O Cavaleiro das Trevas", de Frank Miller, "A Piada Mortal", de Alan Moore, "Asilo Arkham", de Grant Morrison, dentre outros tantos. Considero todas as obras mencionadas acima como de referência e não há dúvida que mexeram com a personagem, com o seu universo ficcional, com seu caráter icônico e mítico e todo o imaginário dos leitores e aficionados, não somente pela excelente qualidade das tramas do morcegão, mas também por apresentarem o famoso arquétipo do vigilante em um "mundo" mais próximo ao nosso, mais palpável, mais cotidiano, urbano e atual (em seus respectivos contextos), ou seja, por mostrarem representações mais complexas, plurais e humanas, no sentido de apresentarem defeitos e obsessões do senhor Bruce Wayne que antes eram camufladas ou sublimadas ante sopapos regados a onomatopeias policromáticas, carros góticos bizarros e equipamentos mandrake. 

O mesmo vale para o excelente filme, "O Cavaleiro das Trevas", de Christopher Nolan e seu senso de pretenso realismo e pragmatismo em torno do ambiente ficcional da personagem, incluindo do famoso vilão Coringa e sua lógica hobbesiana, além de seu senso estético urbano regado a uma ação e uma fotografia que deixam de lado um pouco (ou muito) a computação gráfica para dar lugar a cenários, modelos, fios, máscaras, efeitos de câmera, com o propósito de alcançar um efeito mais "realista", segundo palavras do próprio diretor em diversas entrevistas.

Toda a questão e polêmica então, e por isso o título do post, se resume a esse "pretenso realismo" de Batman, um "realismo" comumente propagado por artistas, roteiristas, leitores e aficionados quase que a exaustão. Mais de uma vez perguntei as opiniões de amigos, conhecidos e fãs não tão conhecidos assim sobre o filme do Batman e a reposta usual foi; "gostei porque achei super realista". O mesmo vale para opiniões de botequim no que concerne ao personagem em si. Quantas opiniões dessas seguiam a cartilha; "eu gosto muito mais do Batman do que do Super Homem, por ele ser mais realista, por ser um homem comum".  

Vamos por partes, tal como o fez nosso não tão querido assim, Jack, o Estripador. 

Em primeiro lugar, o fato de um personagem ser aparentemente próximo a um homem comum não o faz ser necessariamente realista, isso porque "ser humano" é algo que vai além das características fisiológicas e de nossa natureza mortal (como o sujeito que é comum em todos os sentidos, mas que possui um senso moral sobre humano, no sentido de ser incorruptível em qualquer situação), em segundo lugar, porque não basta existirem personagens comuns para que uma obra seja realista, como bem comprova "Alice no País das Maravilhas" e tantas outras personagens aparentemente comuns que visitam lugares completamente míticos, fabulosos e fantasiosos (por acaso um homem comum não ficaria louco no País das Maravilhas, tal como o Chapaleiro Louco?), em terceiro, porque, apesar de parecer humano, Batman, em todas as mídias em que apareceu (incluindo a caricata série de TV estrelada por Adam West) fez coisas que pessoas comuns jamais fariam (lutar  com os punhos e bumerangues contra um monte de gente munida de armas de fogo, estando envolto em uma capa e travestido de morcego e sobreviver durante anos fazendo isso está longe de ser algo palpável segundo critérios realistas). Batman é tão pseudo realista quanto James Bond, Sherlock Holmes, Indiana Jones, Rambo e todos os personagens que se parecem com pessoas comuns a primeira vista, mas que fazem coisas fisicamente e intelectualmente impossíveis para qualquer um de nós, mortais, em nosso "mundinho cão" real.

Se pararmos para pensar, é mais próximo da realidade um alienígena super humano com cueca por cima das calças (não sabemos como é a moda em Krypton e não podemos afirmar que não existam alienígenas com outras estruturas moleculares pelo universo, apesar de não ser lógico isso) fazer coisas super e sobre humanas, do que um ser humano sem poderes quaisquer fazer o que todos os personagens citados acima fazem. 

Isso tudo sem falar no fato de que nenhum filho de qualquer mega empresário do mundo real se tornaria, sob quaisquer circunstâncias reais, o Batman, mesmo após a morte traumática dos pais em um beco lúgubre e sujo. Isso é facilmente provado pela realidade que nos cerca, claro (e aqui o argumento do alienígena citado acima perde força). Existem milhares de pessoas no mundo real, filhos de empresários ou não, que perderam entes queridos em assaltos e crimes quaisquer e nenhum deles, sob quaisquer circunstâncias virou o Batman pelo que se sabe. Ou seja, realismo é aquilo que em situações reais acontece e não aquilo que em situações reais não acontece.

Estou falando aqui de um sujeito que veste trajes de morcego e pula pelos arranhas céus de alguma grande metrópole ou mesmo que anda velozmente pelas vias urbanas em um carrão estranho para caçar criminosos Ou seja, não vale argumentar que existem idiotas fantasiados como o Batman por aí, visto que além de serem incompetentes no combate ao crime (nunca vi no jornal qualquer manchete do tipo, "Famoso gângster nova iorquino foi preso hoje pelo vigilante mascarado denominado Mosca"), se tornaram pseudo vigilantes após lerem alguma HQ ou após verem um filme dessa natureza (casos excepcionais em que a realidade imita a ficção e que, logicamente, não dá certo como na ficção, sendo, portanto casos irreais). Não, realmente não existe nada de realista no conceito do Batman enquanto personagem, nada de realista no conceito de alguém vestido de colant de morcego que caça criminosos com equipamentos diversos para levá-los a justiça dos homens comuns.

O que existe é um cenário que lembra o mundo real, um protagonista e seus coadjuvantes que lembram em alguns de seus comportamentos, ações, emoções, etc, pessoas reais, situações que lembram aquelas do mundo real e isso serve para a maioria dos personagens e obras de ficção existentes. Normalmente obras realistas tratam de pessoas e temas realmente comuns ao extremo e a exaustão, do cotidiano da vida comum, de relacionamentos e situações usuais, ainda que sejam personagens e obras de ficção. Podemos chegar ao mais próximo do realismo em um documentário, uma foto, um texto de cunho puramente descritivo, talvez um diário de vida, uma entrevista de história de vida, mas mesmo assim são representações da realidade, claro, uma visão que toma certas partes pelo todo, visto que nenhuma obra consegue e nem se pretende abarcar o todo real do mundo e das coisas reais do referido mundo (aqui uma leitura de Foucault poderia auxiliar nas divagações filosóficas inerentes entre realidade e representação do real, ou não). 

Mesmo assim muitos argumentarão que num paralelo com outros personagens super heroicos das HQs, o Batman seria um dos mais realistas. Como apontado mais acima, eu já expressei minha opinião que não, que a personagem está longe de qualquer realismo em suas premissas fundamentais. O que acho do Batman, e considero que o filme de Nolan fez isso como ninguém, é que ele pode ter um alto grau de verossimilhança se bem estruturado e trabalhado narrativamente com esse propósito e isso não significa ser realista, mas sim, ser mais palpável dentro de seu absurdo ficcional, de sua irrealidade inerente.

Em termos conceituais, o termo latino veri similis (de onde advêm a palavra verossimilhança), tratado por retóricos e oradores do porte de Cícero, significava algo que, em dada situação poderia ser aproximado ao real, ainda que não fosse a realidade concreta, mas sim um espelho do real, mesmo que a imagem representada não fosse a coisa em si e até pudesse ser distorcida ou invertida. Melhor dizendo, falar de verosimilhança significava afirmar que "se acontece tal coisa, em dada situação, poderia acontecer isso ou aquilo e isso após uma análise sobre o que se sabia sobre o assunto em questão, ainda que fosse algo inexistente, algo irreal". Assim, o que era verossímil não era necessariamente verdade ou realidade tal qual. Como bem afirmara Aristoteles sobre o assunto, "seria verossímil que namorados se amassem e inimigos se odiassem, ainda que não fosse verdadeiro ou real que isso acontecesse, pois existiam namorados que em dadas situações se odiavam e inimigos que se amavam".

Em outras palavras, um cara como o Batman não seria considerado realista em hipótese alguma para qualquer orador de renome e nem para qualquer um de nós que saiba a diferença entre realidade e verossimilhança. 

O que posso sustentar com tudo isso é que, em algumas obras, principalmente o supracitado filme do Nolan, "O cavaleiro das Trevas", Batman e seu ambiente ficcional, incluindo seus coadjuvantes, possuem certa verossimilhança. Ora, apesar de Batman não ser verdadeiro ou real, apesar de ser irreal qualquer ideia de um sujeito fantasiado que combata criminosos com tamanha capacidade, é verossímil na obra de Nolan, que, dada a ideia de que isso seria a tônica de uma obra ficcional, tal personagem irreal faça, em dada situação, coisas palpáveis e verossímeis segundo o que se apresenta na obra. 

Em outras palavras, o filme do Nolan, se utilizou de alguém irreal ao extremo, o Batman e deu-lhe coisas palpáveis para ele segundo graus elevados de verossimilhança, dando um aspecto pseudo realista, tudo isso auxiliado pelo fato das pessoas  que viram o filme confundirem conceitos como de verdade, realidade e verossimilhança. Nolan e outros escritores que apresentaram Batman ao mundo afirmaram em suas obras que, "dado o absurdo disso tudo, isso seria verossímil em dada situação, ainda que em essência toda a situação envolvendo um sujeito vestido de morcego seja irreal ao extremo" (diversos exemplos poderiam ser citados a partir do filme, como a pretensa realidade de pânico coletivo apresentada ao longo de toda a narrativa ou o experimento sociológico do Coringa ou mesmo uma entrevista em que um promotor público, Harvey Dent, afirma ser na verdade um vigilante que se veste de morcego todas as noites, etc). 

Com isso, muitas pessoas passaram a tratar algo irreal como papável sob critérios realistas, esquecendo-se que se trata de algo palpável apenas sob critérios verossímeis e nunca sob critérios reais (acho que um filósofo com raciocínio lógico apurado desmonta até mesmo a verossimilhança do Batman de Nolan e do Ano Um de Frank Miller).

Mas vejam, por ser verossímil, e isso apenas em algumas obras (não em todas), Batman é um personagem bastante interessante, talvez muito mais próximo de arquétipos junguianos do que qualquer outra personagem do universo ficcional de super heróis, mas isso é um assunto que não pretendo tratar nesse momento.
       

Considerações sobre Man Of Steel

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Queria tecer algumas observações sobre o último filme do Superman, logicamente que tratando-se de opiniões de um sujeito, que de certa forma possui uma visão um tanto idealizada do personagem, muito em razão da influência do clássico filme de Richard Donner, de 1978, interpretado por Christopher Reeves.
Antes de mais nada, o filme atual é uma releitura do tradicional personagem da DC Comics, uma adaptação para o mundo contemporâneo do primeiro super herói, agora mais belicoso e aparentemente menos heroico, num sentido tradicional da palavra, de certa forma mais pragmático e marcado por uma visão ideológica policialesca que toma as ações do anti-herói ou da força extrema como genuinamente eficazes diante da violência desmedida presenciada em nosso cotidiano (ainda que a ameaça que ele enfrenta seja alienígena e extrema).
Além disso, o filme reflete uma visão menos inocente de nossa juventude, que toma como modelos não mais as ações de pessoas comedidas, mas sim daqueles que buscam a vitória a qualquer custo, não se importando tanto assim com as consequências de seus atos ou com os meios utilizados para a obtenção do resultado esperado.
Se alguém discorda dessa primeira premissa e considera que não expressa a mensagem do filme, deixe-me explicar o que quero dizer com isso.
O filme procura construir um personagem, utilizando-se do velho esquema do livre arbitro em contraposição a aquilo que seria predeterminado para os indivíduos  (dentro da visão de que os kryptonianos seriam predeterminados para certas funções, a exceção de Kal-El), o que é um tema comum nas histórias do super. Além disso, procura ressaltar a construção da personalidade de Kal-El, formada pelos exemplos de seu pai na terra, um sujeito extremamente virtuoso que educa o filho segundo valores de moderação, heroísmo, abnegação pessoal, sacrifício em nome do bem maior e conduta pelo exemplo. Novamente, até aí, tudo de acordo com o ícone criado e definido ao longo de mais de 50 anos de histórias do personagem.
Então chegamos a grande contradição e, em minha opinião, a falha do roteiro e da direção do longa, ainda que o ator Henry Cavill tenha uma atuação bastante comedida e até muito boa no que concerne a expressão e a presença enquanto herói tradicional.
Isso porque a forma como o super age no decorrer da ação está longe do comedimento e do heroísmo ensinado pelo pai Jonathan Kent no filme, visto que ele é na prática um brucutu que não se importa em destruir prédios inteiros para vencer seus adversários, mais parecendo com os personagens da famosa Image do que com o tradicional herói da DC.
Antes da ação começar, ele já havia mostrado um pouco desse viés um tanto adolescente, quando destrói o veículo de um caminhoneiro (seu ganha pão) porque o mesmo jogou bebida em seu rosto e passou a mão em uma moça qualquer (talvez Lana Lang). Como que um mero revide adolescente sem sentido, diante da suposta honra ameaçada (e devemos lembrar que em Superman II, nosso querido Clark já havia feito algo semelhante, mas em um tom de comédia, característica dos filmes clássicos).
No decorrer da ação, o super chega a destruir um posto de gasolina em sua não tão querida assim Smalville, não se importando com os frentistas que lá trabalham, apenas em tirar o vilão de perto da mãe, ou seja, mais preocupado com seu ente querido do que com as demais pessoas da cidade. Claro que aqueles mais aficcionados vão afirmar que isso é comum em HQs de heróis, ou mesmo em filmes desse gênero, tal como ocorre nos Vingadores.
Devemos lembrar, no entanto, que o super construído pelo próprio roteiro do filme deveria ser comedido, como comprova uma cena em flash back, onde ele é ameaçado por alguns adolescentes e não revida, sendo instigado pelo pai adotivo a escolha certa, ou seja, pelo bem e pela proteção dos inocentes a todo custo, pelo menos é isso que transparece a mensagem da cena.
Também não podemos esquecer que no filme dos Vingadores, muitas cenas do combate foram travadas para o exclusivo salvamento dos cidadãos comuns, seu bem estar, o que não acontece no filme do super, somente em uma cena em que ele salva um militar da super vilã genérica da vez.
Outro salvamento acontece ao final, quando ele mata o general Zod para salvar quatro ou cinco pessoas dentro de um prédio arruinado, uma cena aliás deveras forçada e inútil (visto que Zod já havia fracassado em seu plano) que poderia ser finalizada de outras tantas formas que não a morte do vilão, com o pescoço quebrado pelo super tal como se fosse uma galinha.
Alguns podem dizer que eu estaria tendo aqui uma visão purista do personagem, que ele deve sim chegar no novo milênio adaptado as demandas e visões de mundo de uma sociedade mais cínica, blá blá blá, mas acredito que ao contrário, deveríamos sempre preservar o caráter icônico dos supers heróis, na medida em que o gênero é de super heróis e não de anti-heróis, que  eram minoria nas HQs até os anos 1990.
Além disso, a trilogia do Batman, de Nolan, em nenhum momento tira o caráter icônico daquela personagem, mostrando-o apenas como uma representação do anti-herói (em sua teatralidade para assustar os criminosos), mas nunca ultrapassando a linha que o separa de um vigilante qualquer . O mesmo vale para os Vingadores, que ao contrário do filme do super possui uma alma heroica em toda a sua ação, ainda que os diálogos tenham aquele cinismo dos Supremos. Até mesmo o Hulk, com sua destruição genérica não passa todo esse caráter belicoso de Kal-El, o mesmo valendo para nosso cínico mor Stark, que chega a quase se sacrificar para salvar as pessoas de New York, diferentemente de nosso super, que passa mais de 15 minutos na porrada com o Zod pelos prédios de Metrópolis, sem se preocupar com as consequências disso.
Sinal dos tempos: o Superman se modernizou e perdeu aquilo que define o super herói típico, o comedimento em suas ações, a força proporcional ao perigo enfrentado e principalmente, o bem estar das pessoas em primeiro lugar. O roteiro leva nessa direção da ação típica tradicional do velho escoteiro e na hora em que começa a respectiva ação, surge um super herói genérico a dar porrada nos inimigos, para alegria de muitos jovens e tristeza de velhos nostálgicos como eu. E a vida continua.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Incrivelmente espetacular, o inverossímil aconteceu neste Fantástico Cenário da terrinha “brasilis”, muito aquém de qualquer conto fantástico de John Mandeville referente ao “País da Cocanha”, na esteira do trecho da música de Chico Buarque de Holanda, “Não existe pecado, do lado de baixo do Equador”.
Fontes históricas recém descobertas atestam a existência do suposto Conde Drácula Brasileiro, alguém aparentemente real e que, longe de ser o ancestral histórico de Bento Carneiro, o “Vampiro Brasileiro” de Chico Anysio, teria sido um Contratador, ou seja, um rico fidalgo e agente tributário da coroa portuguesa nas Minas Gerais do século XVIII, auge da exploração aurífera brasileira, mais especificamente, na capitania de Vila Rica de Ouro Preto
Seria nosso vampiro brasileiro um reflexo tupiniquim do excepcional Drácula de Bela Lugosi?
A primeira menção de nosso personagem está na correspondência de certo José Joaquim Carneiro de Melo Viana, rico mineiro da região, dono de seis datas, duas lavras e, segundo a Ata de Entrada da Alfândega do RJ de 1766, proprietário nominal de 68 escravos bantos, advindos da Feitoria de São Jorge da Mina, na Guiné portuguesa.
Na carta em questão, enviada ao irmão Francisco, na época sediado na vila de São Paulo de Piratininga, encontra-se uma breve descrição física do “Conde Misterioso”, como ele mesmo denominou. Vejamos o excerto:
” Caro Francisco,
Não é por excesso de tempo que lhe envio notícias destas terras milagrosas cheias de fartura de ouro de aluvião.
Não devo esquecer, outrossim de mencionar sobre um indivíduo muito estranho e bizonho que por aqui costuma perambular pelas noites quentes e suarentas, cercado por um cortejo de negras da guiné, todas forras e escandalosamente vestidas como senhoras brancas da fidalguia lusitana, à semelhança da negra Chica da Silva, sem falar da corja de vagabundos mulambos, cachaceiros e até alguns frades beneditinos devassos que lhe rodeiam incessantemente pelos guetos e vielas da capitania em que ora resido.
Trata-se de um certo Conde Misterioso, também chamado pela boca do populacho de Conde Agripino, tipinho muito franzino e esguio, nariz e queixo longilíneos e testa proeminente, tão lisa e branca como o restante da careca exposta, quase que aparentando um ovo solitário dentro do ninho.
Os dentinhos pontiagudos e bifurcados lhe saem da boca fina ironicamente sorridente, como os de um pequeno roedor encolhido no porão úmido dos casarões altos e bruxuleantes de Lisboa, fora os olhos negros esbugalhados como que órbitas desnudas aparecendo afora dos buracos profundos da cabeça.
Não é somente por tal aspecto grotesco que esse fanfarrão da nobreza local me chama a atenção, mas principalmente por seus trejeitos espalhafatosos, usualmente vestindo-se como um rei europeu decadente, vergando calças justas sobrepostas por um casaco azul escuro encardido de veludo e um colete carpete carmim bordado de sete lótus douradas, tudo isso sob uma longa capa negra sujismunda de lama nas extremidades, que lhe escondem braços incrivelmente longos e esqueléticos, tais como os cadavéricos dedos das mãos a segurar, ao que me parece, um cetro dourado cheio de pequenos diamantes cristalinos”.
A carta segue tratando dos excessos e das excentricidades do Conde, as risadas altas e estridentes pelas tavernas locais e as bebedeiras constantes dos integrantes de seu estranho cortejo a vagar pelas ruas de Vila Rica, terminando com uma descrição pormenorizada das dificuldades encontradas na região. Pela descrição inicial, Agripino se pareceria com aquela típica imagem do vampiro Nosferatu, do filme mudo de F.W. Murnau, de 1922, porém com um toque tipicamente brasileiro.
Seria essa a figura que vagava pelas ruas de Vila Rica em 1766, cercado de mulheres, vagabundos, bêbados e frades beneditino devassos?
Nas páginas do diário de certo Hortêncio Alencar Sobral, comerciante e tropeiro de Sorocaba, aparece uma nova referência da personagem.
Trata-se de um excerto datado de 1769, mencionando uma recepção bizarra ocorrida no Sobrado da Matriz, casarão outrora pertencente ao famoso bandeirante, Raposo Tavares, mas que na época da mencionada recepção, segundo consta nas Cartas de Sesmarias Municipais de Vila Rica, datadas de 1795, pertenceria a certo Agripino Oliveira Maia, Conde Agripino e Alcaide Mor de Jabaquara do Norte.
Vejamos.
“Dia 25 de Março de 1769,
Posso, por assim dizer, que nunca tinha visto uma festança daquelas, cheia de guloseimas, bebidas de toda a leva, mulheres da vida, semelhantes a jovens tropéis regadas a lantejoulas e anedotas de gente de toda a estirpe, da mais alta nobreza municipal até os mais infames bandoleiros, das nobres famílias dos “homens bons” até os mais corruptos degredados da capital.
No centro da orgia dos embriagados, encontrava-se o anfitrião, Conde Agripino, cercado por duas negras “bugias”, risonhas e seminuas, com os peitos “chochos” à mostra, sentadas a tiracolo nas pernas finas do mesmo, por sua vez jogado sobre um grande trono de madeira do mais puro cedro europeu, como se fosse o rei daquela pequena corte mundana.
Mal acreditei quando o Conde levantou-se do trono e como um bufão da própria corte, começou a rodopiar e a gritar palavrões de toda a espécie, sendo igualmente rodeado por várias raparigas de todas as “raças” e classes de gentes, enquanto alguns escravos faziam uma dança estranha ao som de uma espécie de instrumento semelhante a um arco tosco improvisado.
Espero esquecer de tais fatos macabros rapidamente, tal como nosso querida majestade, D. José I, quando esqueceu-se de governar seu próprio Império, deixando todas as contas e decisões da metrópole nas mãos do Marquês de Pombal”.
Ouro Preto nos dias de hoje, antiga Vila Rica, é a imagem de seu passado histórico de sucesso, quando o ciclo do ouro fez de Minas Gerais um dos principais pólos culturais brasileiros. Conde Agripino teria vivido e dado muitas recepções bizarras no município.
Mais importante do que qualquer contextualização histórica é a percepção de que, três anos depois da primeira menção da existência do Conde, na época histórica em que o Marquês de Pombal “governava” Portugal como Ministro dos Negócios Estrangeiros do rei, o Conde Agripino ainda era comentado entre os moradores de Vila Rica, normalmente tido como um sujeito excêntrico, festeiro e boêmio, um homem da noite e das festas de cordéis.
A fonte a seguir chama mais a atenção ainda, representando uma espécie de diálogo registrado travado entre o Conde e o próprio autor do texto, certo Marciano Pereira das Neves, irmão mais novo do Capitão Mor de Vila Rica, Adroaldo Pereira das Neves. Vejamos o excerto encontrado no Arquivo Histórico Nacional do RJ, provavelmente um trecho escrito de um excerto ainda maior:
“(…) no meio da festança no Casarão do Conde Misterioso, me vi cercado por lindas criaturas do gênero feminino, fossem elas brancas, mestiças, negras ou “bugras”, todas nuas em pelo a me lamber e girar. Estando já bastante embriagado, logo cambaleei para uma das janelas do casarão e, ao abri-la, coloquei para fora de súbito todas as iguarias exóticas que havia ingerido na ocasião. Quando dei-me por conta, alguém cutucou-me o ombro emitindo um som de estalo com os lábios:
- Toc Toc.
- O que?
Respondi logo ao virar-me.
- Toc Toc.
Lá estava o Conde, os olhos esbugalhados, fitando meu pescoço, como se este fosse um gordo naco de carne de carneiro virgem.
- Desculpe-me conde, não entendi.
- Toc Toc.
 Novamente aquele som estranho saído da boca, ao mesmo tempo em que me cutucava o braço esquerdo.
- Quem é?
Resolvi entrar em sua estranha pirelha.
- É o Conde Agripino, meu jovem.
Ele respondeu sorrindo, um olhar sardônico, com um toque de ironia macabra, quase que me consumindo, meio que lambendo os lábios finos nos longos dentes pontiagudos de rato maltês.
- O que o senhor quer meu nobre conde?
Respondi subitamente tentando me afastar, ao mesmo tempo em que procurava disfarçar o mal estar que sentia, nem tanto pelo vinho doce do Porto que havia consumido por horas afins, mas pelos gestos, olhares e principalmente, pelo sorriso malicioso do exótico anfitrião.
- Ora, quero ser convidado para entrar, me alimentar direitinho. Por acaso não terias em sua choupana uma pequena jovenzinha inocente, quem sabe uma tia gorda inútil faladeira ou até mesmo quem sabe alguma destas amas de leite com seios fartos e papo de onça?
Logo ao terminar a frase, eu e o conde caímos na gargalhada, logo sem antes fingir convidá-lo à minha casa imaginária. Certamente que eu não entendi sua pirraça, mas percebi que ele se deliciou com o medo gerado, levando-me a crer tratar-se exatamente disto.
Não demorou nem um quarto de hora, logo saí sorrateiramente da festa, ainda antes do alvorecer, chegando em casa e me debruçando na escrivaninha para escrever estas breves linhas sobre os fatos da noite.
Ora ora… Alguém bate na porta…”
Seria esse o olhar de Conde Agripino para suas vítimas?
Seria esse o olhar sardônico de Conde Agripino para suas vítimas?
O trecho termina subitamente, como se o autor tivesse finalizado o conto com uma frase de efeito, um tanto sem sentido à primeira vista, mas que diante de uma outra fonte cruzada, torna-se deveras interessante. Trata-se do relatório de seu próprio irmão, Adroaldo, como já mencionado anteriormente, Capitão Mor de Vila Rica. O trecho abaixo é revelador. Vejamos:
“Dia 14 de outubro, sexta feira,
O corpo da vítima encontrava-se largado e escorado em um biombo esmaltado em frente à uma escrivaninha cheia de rolos e códex semi-oxidados, alguns lambuzados com tinta preta do pincel caído ao redor.
Estranhamente, a vítima mostrava sinais de contentamento na face, apesar do corpo ter sido sugado de fora para dentro. Além disso, o corpo nu revelava oito incisões semelhantes a duas agulhas grossas, comumente utilizadas em sangrias, duas no braço esquerdo, outras três em volta do pescoço e músculos lombares e duas maiores na nádega direita.
A julgar pela posição acocorada da vítima, como um feto de bruços e com o queixo colocado sob a escrivaninha, provavelmente o atacante o abraçou por trás e finalizou o assassínio batendo sua cabeça na borda da referida mesa, enquanto lhe sugava o sorvo da vida pelos próprios ferimentos”.
Interessante notar a aparente frieza do irmão da vítima no texto. O mesmo Adroaldo relata em um boletim de ocorrência datado de 03 de março de 1792 que, em uma ronda casual pela periferia de Vila Rica, duas horas antes do turno matutino, ouvira um grito de mulher vindo da parte de cima de um pequeno sobrado de esquina, seguido de um estilhaçar de janelas e vidros quebrando, além de um tiro opaco de arcabuz. Vejamos o referido trecho do boletim:
“… me deparei com o inimaginável. A mulher, completamente nua à janela, gritava com sua voz rouca frases do porte, “não machuque meu ratinho querido, seu corno infeliz insolente”, enquanto o marido, com arma em punho tentava carregar o arcabuz de modo a desferir mais um tiro contra outro indivíduo, postado de pé, mais adiante, também quase sem roupas e com os “documentos” a mostra, balançando-os de cima para baixo, gritando, rindo alto e maldizendo o atacante, ora com palavrões, ora com frases desconexas e sibilosas em uma língua esquisita, enquanto por cima da nudez devassa esvoaçava uma espalhafatosa e gafieira capa preta, como se fosse um morcego maneta ferido ao vento.
Ao observar mais de perto, considerei tratar-se de Conde Agripino, espargido na faces com aquele pó de mico utilizado pelos negros em seus rituais heréticos, o mesmo conde tão comentado por todos os malandros e vadios dessa capitania, movido a vinho, orgias e fidalguias, um dos cinco suspeitos da morte de meu irmão, há três anos atrás.
Infelizmente, o Visconde de Barbacena lhe serviu de álibi, impedindo sua prisão pela tentativa de assassinato da mulher mencionada acima, Dona Rosa de Castro, apesar da mesma não prestar queixas contra o suposto atacante, preferindo xingar e culpar o próprio marido pelo ocorrido, como se tivesse mais afeto pelo atacante do que por seu audacioso defensor.
Além do que, pela distância em que me encontrava do suspeito, pela escuridão da noite alva naqueles breves momentos antes do alvorecer e, principalmente, pelo fato do suspeito ter urinado em minha direção no meio da referida perseguição (diga-se de passagem, um líquido viscoso esverdeado, meio ácido), ficou impossível uma melhor identificação do mesmo.”
Conde Agripino teria assim escapado da suspeita de tentativa de assassinato. Dois anos depois do ocorrido, o marido de Dona Rosa, o atacante do Conde naquela noite, teria sofrido um estranho acidente, afogando-se em uma foça de dejetos humanos, de um metro e meio de profundidade.
Mais dois anos se passaram e o mesmo Adroaldo teria conduzido o depoimento de um jovenzinho de 12 anos de idade que teria visto o assassino da própria mãe, Inácia de Albuquerque, uma mestiça forra de Vila Rica, suposta mulher da vida e amante do já mencionado Visconde de Barbacena.
Dissera o jovenzinho de nome Leonardo, que o assassino estava na cama da mãe, completamente nu e com o rosto no meio das coxas da vítima, no instante do assassinato, como que lhe sugando o ventre. Ao levantar a cabeça em direção do menino que entrara no quarto subitamente,  o assassino teria dito “Sai daqui fedelho mimado, isso não é cousa pra gentinha da tua idade”.
Junto do relatório acerca do depoimento, encontrava-se um bilhete, com os dizeres “mulher negra esquálida, como se o próprio sangue tivesse sido sugado de fora para dentro, tal como meu irmão”, além de um suposto retrato falado do assassino, efetuado a partir do relato do menino, que antes de ser levado pela avó materna para São José Del Rey, teria dito, “o sugador de coxa da mami era aquele homi careca da mansão grande, com oreias di murcego, o tal condi”.
Retrato falado do suposto assassino da mestiça Inácia de Albuquerque. Seria esse o Conde Agripino na visão inocente de uma criança de 12 anos de idade?
Para finalizar, dois relatos impressionantes.
O primeiro de um tal de José Manuel Barata, primeiro secretário da Intendência das Minas Gerais. Trata-se de uma correspondência para o Governador Geral, também chamado na época de Vice Rei, sediado no RJ.
Na carta em questão, está o relato sobre os nomes dos Contratadores em débito para com a coroa na capitania das MG, incluindo na lista o nome de certo Conde Agripino, devedor de mais de 500 mil réis. No texto em questão, é mencionado um encontro do Conde com o primeiro secretário, sugerindo a tentativa de solução do referido débito por meios bastantes insólitos e esclarecedores. Vejamos novamente:
De certa forma foi impressionante o que vi e ouvi naquela tarde de outono. O Conde Agripino, mal chegou na audiência marcada, sentou-se em minha frente e começou a repetir certas palavras com a voz sibilante e com gestos espalhafatosos, como um demente:
- “Eu não devo naaaada, vossa mercê irás esqueceeeeer do assuuuuuunto e acreditar que eu não devo nadaaaaaaaaaaa”.
Inicialmente considerei tratar-se de algum mal entendido, tetando explicar ao Conde o teor de sua dívida e as ordens que pessoalmente recebera da Intendência das Minas, ou seja, ordens de cobrar os Contratadores da região em atraso. Ele por sua vez, continuava a repetir: 
- “Olheeeeee nos meus olhoooooos e digaaaaaaa em voooz altaaaaaa, o Conde não deve nadaaaaaa, eu irei esqueceeeeeer do assunto e acreditar que o Condeeeee não deve nadaeeeeee”.
Novamente tentei argumentar, explicar por sua vez que não estava entendendo suas palavras e gestos, que aquilo era uma brincadeira de mal agouro com uma autoridade. Mais uma vez ele falou, de forma mais possante, aumentando o tom da voz, aproximando seus olhos esbugalhados junto dos meus e dizendo em tom demoníaco:
- “Olhe aqui cãooooo imundo sarnentoooooo, o Conde ordenaaaaaa, irás esqueceeeeeeeer da dívidaaaaaaaa, irás acreditar que o Conde não deve nadaaaaaa, irás diminuir nesse mundão aforaaaa e desapareceeeeeeer daquiiiii filho de um jegueeeee e de uma égua brazinaaaaaaaaaa”.
Diante desse tom ameaçador e insano, chamei alguns Dragões da Coroa e coloquei o Conde para fora da sala de audiência. Porém, ainda que carregado pelos dois homens pelos braços, o Conde seguiu rosnando e dizendo de forma ameaçadora:
- “Nojento sarnentooooo filho de uma onça pintadaaa, irás esqueceeeeer da dívida, irás esquecer do Condeeeeeeee, assim ordenaaaaaa Agripinooo”.
A partir destes fatos, sugiro a prisão ou detenção imediata para loucos deste homem macabro, não somente pela referida insolvência para com nosso senhor Del’ Rey, mas também pelo desacato para com uma autoridade metropolitana.
Meu caro Vice Rei, peço então alguma solução para este indivíduo que por aqui é bastante conhecido por tais acessos levianos de loucuras e excentricidades, safando-se das guarras da lei e da justiça por ser da nobreza colonial e em razão de ter uma estranha intimidade com o Visconde de Barbacena.
Que estanho relacionamento teria o Conde Agripino com o Visconde de Barbacena, maior autoridade da região e Intendente das Minas Gerais?
Chama atenção, porém, após esse relato, a correspondência do mesmo secretário, Manuel Barata, dois meses depois, endereçada ao mesmo Vice Rei no RJ. De forma lacônica, a segunda carta traz os seguintes dizeres:
À Vossa Senhoria, Vice Rei do Brasil,
Informo prontamente que todas as dívidas do Conde Agripino Maia foram acertadas com a Intendência das Minas, não devendo esse nobre senhor nenhum vintém à coroa e a nossa querida majestade, estando, portanto em dia com suas taxas anuais de Contratador oficial da Coroa Imperial na Capitania de Vila Rica do Ouro Preto. Desconsiderar a carta anterior.
De certa forma, não sabemos o que transcorreu nesses dois meses, entre a primeira correspondência do secretário, acusando o Conde e a segunda, não somente inocentando das dívidas, mas desconsiderando à anterior. Somente a certeza de que o Conde Agripino fez valer sua vontade ao final do evento.
Minha hipótese é de que os poderes mentais de persuasão de nosso vampiro brasileiro funcionavam relativamente bem, tal como comprova o teor da segunda carta, porém com certo atraso. Como no Brasil estamos sempre “correndo” atrás do que acontece no resto do mundo, o mesmo valeria para os poderes mentais de dominação de nosso suposto vampiro mor brasileiro.
Os poderes mentais do Conde Agripino teriam-no livrado de suas dívidas, porém funcionando com dois meses de atraso.
Os poderes mentais do Conde Agripino teriam-no livrado de suas dívidas pregressas, porém funcionando com dois meses de atraso.
O último relato relaciona-se com a vinda da família real para o Brasil, em 1808.
Quando D. João, Príncipe Regente de Portugal aportou no RJ, após fugir das forças de Napoleão Bonaparte, trouxe consigo uns 12 mil nobres com ele, estabelecendo a corte do Império Português no Brasil, o que duraria até 1821.
O registro do escrivão pessoal da esposa de D. João, Carlota Joaquina, novamente nos coloca em contato indireto com o vampiro brasileiro. Vejamos:
“Impressionante a quantidade de colonos à espera de nosso rei no porto, todos amontoados e espremidos para ver os integrantes da mais alta nobreza lusitana, naquela tarde quente do verão dos trópicos. Quando me dei por mim, observei nosso estimado príncipe caminhando ao lado de um homem esguio e esquelético, abraçado ao pescoço de nosso querido regente, como que lhe falando ao pé do ouvido, assemelhando-se a um dos velhos amigos íntimos de vossa majestade.
O dito cujo estava vestido com um colete carmim desbotado, com setes lótus douradas nas extremidades, encimado por um casaco azul escuro de veludo e uma capa velha suja meio encardida.
Era um tipo estranho da nobreza local, uma cruza de eslavo advindo da Europa Oriental com essa gente crioula que habitava a colônia desde o achamento, cheio de pó no rosto magro e suado, lambendo os lábios finos e os dentes pontiagudos que lhe saiam como presas.
Sem dúvida não passava de um destes novos nobres coloniais, mas que rapidamente conquistou a simpatia de nosso regente, ainda que eu tenha percebido certo temor em seus olhos inocentes, enquanto vagava pela multidão de curiosos abraçado ao exótico homem mencionado acima, um certo Conde Agripino, pelo que me contaram depois”.
D. João teria se relacionado com Conde Agripino logo que chegou ao RJ, em 1808.
Os relatos demonstram que Conde Agripino não só tinha poderes sobre os outros seres viventes, ainda que com certo atraso, como também demonstram que o Conde conseguia se relacionar com pessoas influentes da Metrópole, incluindo o futuro rei de Portugal, Dom João VI, coroado no Brasil em 1818.
Mais interessante ainda é notar que a descrição do Conde no último relato é quase idêntica ao do primeiro, em um arco cronológico de quase quarenta anos de diferença, significando quem sabe, um envelhecimento lento e tardio, quem sabe ainda, a famosa imortalidade comumente atribuída aos vampiros.
Fosse nosso “querido” Conde Agripino, o mais notório representante brasileiro do vampirismo das Américas ou apenas um louco farsante e exótico, suas aventuras inscritas nos relatos e fontes primárias da história colonial chamam nossa atenção, não somente por seu caráter enigmático, fantástico, bizarro e excêntrico, mas também pelos relatos pitorescos e ao mesmo tempo macabros sobre sua pessoa, relatos esses que de certa forma expressam aspectos pontuais da cultura histórica brasileira.