quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Algumas considerações sobre Histórias em Quadrinhos





No decorrer dos últimos meses me dediquei à leituras especializadas e cursos teóricos sobre Histórias em Quadrinhos (Comics Book) e agora faço algumas considerações gerais sobre o assunto:

- As obras "Narrativas Gráficas" de Will Eisner e "Desvendando os Quadrinhos", de Scott MacCloud são essenciais para uma definição segura do que seja essa forma de mídia e comunicação. O primeiro autor trata as HQs como "artes sequenciais", ou seja, "imagens dispostas em sequência" e, em outro momento especifica um pouco mais tal definição ao afirmar que tratam-se de "narrativas gráficas", ou seja, formas de "narração baseadas em imagens de modo a transmitir idéias e comunicar uma história". Já o segundo autor tece uma definição mais específica ainda, tratando as HQs como "imagens pictóricas e outras justapostas em sequência deliberada, destinadas a transmitir informações ou produzir uma reposta no espectador/leitor". Em outras palavras, as HQs seriam como que "recipientes midiáticos" que podem conter diversas idéias, imagens, temas, conteúdos, estilos e técnicas narrativas/artísticas, o que desde já desconstrói a opinião corrente de que possuem relação direta com certos temas específicos, como de super heróis ou de "animaizinhos" engraçados e afins. Apesar de muitas HQs possuírem tais conteúdos temáticos, não significa que se resumem a isso.

- As opiniões depreciativas do público em geral sobre as HQs possuem diferentes causas, desde a ignorância de muitas pessoas sobre o que realmente seria tal veículo de comunicação e de manifestação artística até certos posicionamentos preconceituosos de educadores e "especialistas em juventude e adolescência" que, no decorrer das seis primeiras décadas do século XX, consideraram as HQs como sendo "vulgares, estúpidas, moralmente condenáveis e/ou como a expressão do baixo senso intelectual daqueles que não gostavam de livros". Além disso, os leitores de HQs eram considerados jovens incapazes cognitivamente e, por isso, facilmente "manipuláveis diante de imagens de cores berrantes, rostos disformes e esgares contorcidos de ódio e terror, uma forma de manifestação que careceria de senso estilístico e gramatical". Tais opiniões pejorativas e preconceituosas, extraídas do estudo de um pesquisador chamado Thierry Groensteen foram sintetizadas na impactante e absurda obra, "Seduction of the Innocents", do psicólogo Fredric Wertham, publicada em 1954. O autor da obra, inserida no contexto do macartismo (comissão no senado dos EUA presidida pelo senador Joseph MacCarthy para investigar e julgar adeptos, partidários e simpatizantes do comunismo) estaria preocupado com a delinquência juvenil e com as influências nefastas de certos bens culturais midiáticos na moral tradicional estadunidense da época, o que levou a indústria das HQs à defensiva, condicionando a criação do chamado Comics Code pela mesma. 

- Agora, a forma pejorativa como muitos pesquisadores e especialistas das ciências das humanidades trataram os quadrinhos até a década de 1960 têm relação direta com suas posições conceituais em torno da existência de uma cultura de elite em oposição a uma cultura popular, normalmente vinculada a cultura de massa. Para resumir, é como se os artefatos culturais voltados para o homem comum, do povo, fossem de baixa qualidade, quando não constituídos para a total alienação dos receptores de bens culturais, com fins ideológicos ou mesmo econômicos, dentro do processo de  mercantilização e massificação da cultura ocorrido no século XX. Alguns expoentes da Escola de Frankfurt e também alguns pensadores marxistas expressaram posições que dicotomizaram a cultura, preocupando-se com os processos de alienação e dominação ideológica das massas via produção e difusão de bens culturais voltados para tais setores subalternos da sociedade (um viés importante, mas que acabou gerando tal visão hermética e unilateral das mídias em geral e dos quadrinhos em particular). Indiretamente ou não, as HQs, consumidas por milhares de jovens a partir da década de 1930, acabaram sendo depreciadas, tanto como produtos massificados da ideologia dominante, assim como bens produzidos para fins exclusivos de lucro e acumulo de riqueza de uma pujante e inovadora indústria cultural.

- Podemos traçar aqui dois tipos de leituras teóricas distintas sobre os produtos massificados da indústria cultural, incluindo os quadrinhos, e isso, a partir das explanações do filósofo Douglas Kellner sobre o que denomina de Cultura da Mídia. 

- Por um lado temos leituras de alguns expoentes da Escola de Frankfurt (principalmente Theodor Adorno), que consideraram os produtos da indústria cultural (termo cunhado pelos pensadores dessa escola teórica) como expressões da dominação de classe e/ou da alienação das massas. Por outro lado, temos os chamados Estudos Culturais Britânicos, que procuraram compreender a dialética intrínseca existente nesses produtos massificados, suas formas de alienação e ao mesmo tempo os posicionamentos críticos intrínsecos nos mesmos, ou seja, a expressão dos conflitos culturais e políticos existentes em nossa sociedade. 

- É possível traçar opiniões dicotômicas sobre bens culturais em dois estudiosos específicos da cultura, o primeiro, Edgar Morin, que relaciona a cultura de massas à indústria cultural para fins exclusivos de lucros rápidos em detrimento da cultura popular genuína e o segundo, Nestor Garcia Canclini, que considera existir uma hibridização entre a cultura de massas e a cultura popular, sendo a primeira, um produto cultural consumido em razão de ecoar visões de mundo em amplos setores da sociedade contemporânea, porque mesclada ao popular, ela se faz entender pelos receptores de bens culturais, podendo auxiliar, inclusive na formação crítica e da cidadania dos mesmos, uma visão que se distancia da opinião corrente de que tudo o que é voltado para o povo significa alienação.

- É possível trazer aqui um exemplo bastante peculiar, relacionado a Marvel Comics, uma das grandes empresas de quadrinhos de super heróis dos séculos XX e XXI e isso a partir da obra, "Marvel Comics, a História Secreta", de Sean Howe. Quando foi rearticulada em 1961 pelo escritor, roteirista e editor Stan Lee e pelo desenhista e criador, Jacky Kirby, a Marvel se tornou uma espécie de "Casa das Idéias" de novos artistas, inovando o gênero dos super heróis nos EUA e no mundo. Isso ocorreu porque os artistas da empresa colocaram em cena narrativas antenadas com o contexto de seus leitores, gerando identidade nos mesmos em relação a heróis adolescentes ou mesmo aproximados das pessoas reais e que, tal como qualquer pessoa, tinham problemas semelhantes aos do homem comum das grandes cidades dos EUA.

- Com o tempo, porém, o espírito criativo foi entrando em conflito com o espírito corporativo, ocorrendo uma expansão gradual da linha de super heróis Marvel e dos lucros das empresas que gerenciavam a linha editorial de super heróis (ao longo das três primeiras décadas de reformulação, a Marvel passou por três empresas diferentes). Nos anos 70  e 80, certa independência dos artistas e editores-artistas geravam narrativas bastante engajadas, críticas e inovadoras (as narrativas cósmicas de Jim Starlin, por exemplo fugiam a qualquer espírito corporativo que tivesse preocupações exclusivas com os lucros imediatos) ao mesmo tempo em que foram sendo controladas pelo corpo editorial, agora centralizado nas mãos de Jim Shooter. 

- No final dos anos 1980 e início dos anos 1990 as coisas mudaram mais radicalmente aina, visto que os próprios artistas, agora verdadeiras celebridades do meio, começaram a não se preocupar mais tanto assim com a qualidade das narrativas, mas sim com desenhos multi cromáticos e detalhistas e ações impactantes que gerassem nos leitores o fascínio pelas HQs, incrementando assim a mercantilização por parte de colecionadores e/ou especuladores do gênero. Artistas como Todd MacFarlane e Rob Liefeld não precisaram de ordens de cima para se desvencilharem daquele espírito crítico e dinâmico da Casa das Ideias dos anos 60,70 e início dos 80. Eles simplesmente foram se inserindo no esquema dos especuladores de HQs cromáticas, com capas e artes detalhadas ao extremo e histórias cheias de ação gratuita e vazias, quase que pasteurizadas. Ainda assim, bons arcos podiam aparecer na Marvel e nada era arquitetadamente pensado para alienar ou mesmo para gerar convulsões sociais entre os jovens leitores. Os lucros sempre fizeram parte do esquema, desde os anos 1960 (até antes disso, nos tempos da Timely Comics) e não afetaram diretamente as boas idéias dos artistas da empresa nas primeiras décadas de reformulação Marvel, ainda que por causa de direitos autorais, muitos desses artistas tenham se desentendido com a Marvel ao longo dos anos.

- Agora, importante mencionar que existem no Brasil diversos especialistas em HQs, todos eles referências para qualquer estudioso que pretenda seguir por essa seara. Nomes como de Álvaro de Moya, Antônio Luiz Cagnin, Zilda Augusto Anselmo, Waldomiro Vergueiro, Sérgio Augusto e Moacy Cirne devem ser listados nas bibliografias de qualquer trabalho, sendo que todos eles possuem trabalhos sérios que são facilmente encontrados na internet. Em um artigo recente, Vegueiro específica os tipos de estudos acadêmicos existentes sobre quadrinhos na USP e sua classificação pode auxiliar quaisquer novos pretendentes a pesquisadores. 

- Em primeiro lugar existem aqueles estudos que tratam da linguagem das HQs, a forma como são constituídos, com seu tempo espacializado, sua elipse narrativa, as formas de enquadramento e de perspectivas, as representações de sons, chamadas de onomatopeias, as linhas cinéticas que dão movimento as imagens e até mesmo, o estudo da "sarjeta", o espaço vazio dos quadros que serve à elipse narrativa, onde os leitores interagem com o escritor para dar continuidade e significados as sequências dispostas. Em segundo lugar podemos elencar a análise de conteúdos, ou seja, os significados presentes nas HQs, bem como os processos de codificação das mensagens nas mesmas. Em terceiro lugar, temos as análises históricas das HQs, quando foram produzidas, publicadas e distribuídas e as relações com seus respectivos contextos históricos, o que seria a análise das conjunturas, do levantamento das publicações e da recuperação da memória das narrativas, dos artistas e seus editores. Em quarto lugar, elencamos a análise das sociedades e culturas subjacentes as produções de HQs, que seria uma abordagem relacionada a temas comuns presentes nas HQs e em nossa sociedade e cultura, tais como, violência urbana, guerra, racismo, sexismo, feminismo, xenofobia, etc. Seguindo aqui as premissas do historiador Paul Veyne, todo estudo histórico é igualmente sociológico, significando que a perspectiva histórica e sociológica se interpenetram. Outras formas de leituras seriam a análise técnica e estética das HQs, as formas de aplicações práticas em marketing, bem como as análises de recepção, ou seja, como as histórias foram lidas e quais as reações do público ante as mesmas (essa tarefa é facilitada hoje em dia devido a internet e os blogs especializados, onde os leitores tecem comentários sobre o que foi publicado). Isso sem falar nos estudos sobre a economia das HQs, as tendências de mercado, os tipos de público para cada gênero, suas segmentações.

- Colocaria aqui mais um tipo de estudos que me interesso sobremaneira, os estudos sobre os "usos do passado", ou seja. estudos sobre o contexto histórico de produção e difusão de algum arco ou histórica que tenha um passado histórico qualquer como tema (por exemplo, a famosa obra Astérix, que trata da conquista das Gálias por César no século I a.C) o que sugere uma análise sobre a forma como é representado esse passado no mundo contemporâneo.

- Para finalizar, gostaria de tecer alguns comentários sobre Alan Moore, famoso escritor inglês que legou ao mundo HQs do porte de Watchmen, V de Vingança, A Liga Extraordinária, Do Inferno, Promethea, e tantas outras. Após observar atentamente seus comentários no documentário "The Mindscape of Alan Moore" percebo que sua obra, Promethea é a expressão mais genuína daquilo que ele define como arte e magia. O que me impressiona em Moore, além de sua erudição é o fato dele vincular arte com magia, como se a arte fosse a elevação do homem para outro nível de consciência, como se o artista, inspirado por forças mágicas, pudesse, com seus artefatos culturais, moldar, transformar o nível de consciência dos indivíduos de modo a que esses transformem a realidade a sua volta, adquirindo uma consciência igualmente mística, tocando o mundo sobrenatural com tal consciência. 

- Para muitos críticos das opiniões dele, isso parece pura insanidade embebida em drogas, mas Moore reinterpreta, por meio de seus conhecimentos e releituras de Ocultismo, da Kabhala, de Exoterismo, o que pensavam os antigos poetas aedos gregos ou mesmo os bardos celtas, que concebiam sua poesia como a inspiração das musas e das forças primordiais, com se fossem tocados pela luz da verdade. Como bem reitera o estudioso Marcel Detienne ao tratar do pensamento mítico entre os gregos antigos, a aletheia significaria verdade, a luz que ilumina o homem com a inspiração das musas, que tira os entraves da ignorância e da escuridão, da lethe. Para os aedos a arte servia para a inspiração e a elevação do pensamento humano. Se Moore tem alguma leitura teórica é difícil afirmar (acredito que sim), mas com certeza seu conhecimento empírico, embebido pela literatura, filosofia e pela mitologia (a partir das premissas de Joseph Campbel, presumo) fizeram com que ele se veja como um poeta dos quadrinhos, o que estaria próximo das artes da magia. 

- O fato dele se ver como um mago leva muitas pessoas a taxarem-no de louco, mas a magia para ele seria a arte que inspira e toca a consciência do público e isso, para os grandes filósofos gregos (como Aristóteles) era o dever da poesia, inspirar e colocar as grandes questões existenciais em pauta. Só para fechar. Moore chega a dizer no documentário que mitologia é uma forma de linguagem complexa (e quanto mais deuses, mais complexa), uma ideia encontrada em pensadores como Roland Barthes e Juanito de Souza Brandão. Se ele leu os dois pensadores, não sei afirmar, mas ele expressa ideias bastante ricas e isso mostra que sua obra não é apenas um punhado de tinta e letrinhas psicodélicas sobre papel. Se pararmos para pensar em tudo isso, podemos afirmar então que os quadrinhos possuem um alto grau de abstração e sabedoria de vida, tal como seriam os mitos para Campbell, claro, se bem escritos, elaborados e articulados.

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