domingo, 16 de fevereiro de 2014

Batman e seu pretenso realismo



Em primeiro lugar, gostaria de enfatizar que gosto do personagem criado por Bob Kane, que por muito tempo li e reli HQs de Batman, sejam aqueles da cronologia, escritas por roteiristas do porte de Denis O'Neil, sejam os famosos, "O Cavaleiro das Trevas", de Frank Miller, "A Piada Mortal", de Alan Moore, "Asilo Arkham", de Grant Morrison, dentre outros tantos. Considero todas as obras mencionadas acima como de referência e não há dúvida que mexeram com a personagem, com o seu universo ficcional, com seu caráter icônico e mítico e todo o imaginário dos leitores e aficionados, não somente pela excelente qualidade das tramas do morcegão, mas também por apresentarem o famoso arquétipo do vigilante em um "mundo" mais próximo ao nosso, mais palpável, mais cotidiano, urbano e atual (em seus respectivos contextos), ou seja, por mostrarem representações mais complexas, plurais e humanas, no sentido de apresentarem defeitos e obsessões do senhor Bruce Wayne que antes eram camufladas ou sublimadas ante sopapos regados a onomatopeias policromáticas, carros góticos bizarros e equipamentos mandrake. 

O mesmo vale para o excelente filme, "O Cavaleiro das Trevas", de Christopher Nolan e seu senso de pretenso realismo e pragmatismo em torno do ambiente ficcional da personagem, incluindo do famoso vilão Coringa e sua lógica hobbesiana, além de seu senso estético urbano regado a uma ação e uma fotografia que deixam de lado um pouco (ou muito) a computação gráfica para dar lugar a cenários, modelos, fios, máscaras, efeitos de câmera, com o propósito de alcançar um efeito mais "realista", segundo palavras do próprio diretor em diversas entrevistas.

Toda a questão e polêmica então, e por isso o título do post, se resume a esse "pretenso realismo" de Batman, um "realismo" comumente propagado por artistas, roteiristas, leitores e aficionados quase que a exaustão. Mais de uma vez perguntei as opiniões de amigos, conhecidos e fãs não tão conhecidos assim sobre o filme do Batman e a reposta usual foi; "gostei porque achei super realista". O mesmo vale para opiniões de botequim no que concerne ao personagem em si. Quantas opiniões dessas seguiam a cartilha; "eu gosto muito mais do Batman do que do Super Homem, por ele ser mais realista, por ser um homem comum".  

Vamos por partes, tal como o fez nosso não tão querido assim, Jack, o Estripador. 

Em primeiro lugar, o fato de um personagem ser aparentemente próximo a um homem comum não o faz ser necessariamente realista, isso porque "ser humano" é algo que vai além das características fisiológicas e de nossa natureza mortal (como o sujeito que é comum em todos os sentidos, mas que possui um senso moral sobre humano, no sentido de ser incorruptível em qualquer situação), em segundo lugar, porque não basta existirem personagens comuns para que uma obra seja realista, como bem comprova "Alice no País das Maravilhas" e tantas outras personagens aparentemente comuns que visitam lugares completamente míticos, fabulosos e fantasiosos (por acaso um homem comum não ficaria louco no País das Maravilhas, tal como o Chapaleiro Louco?), em terceiro, porque, apesar de parecer humano, Batman, em todas as mídias em que apareceu (incluindo a caricata série de TV estrelada por Adam West) fez coisas que pessoas comuns jamais fariam (lutar  com os punhos e bumerangues contra um monte de gente munida de armas de fogo, estando envolto em uma capa e travestido de morcego e sobreviver durante anos fazendo isso está longe de ser algo palpável segundo critérios realistas). Batman é tão pseudo realista quanto James Bond, Sherlock Holmes, Indiana Jones, Rambo e todos os personagens que se parecem com pessoas comuns a primeira vista, mas que fazem coisas fisicamente e intelectualmente impossíveis para qualquer um de nós, mortais, em nosso "mundinho cão" real.

Se pararmos para pensar, é mais próximo da realidade um alienígena super humano com cueca por cima das calças (não sabemos como é a moda em Krypton e não podemos afirmar que não existam alienígenas com outras estruturas moleculares pelo universo, apesar de não ser lógico isso) fazer coisas super e sobre humanas, do que um ser humano sem poderes quaisquer fazer o que todos os personagens citados acima fazem. 

Isso tudo sem falar no fato de que nenhum filho de qualquer mega empresário do mundo real se tornaria, sob quaisquer circunstâncias reais, o Batman, mesmo após a morte traumática dos pais em um beco lúgubre e sujo. Isso é facilmente provado pela realidade que nos cerca, claro (e aqui o argumento do alienígena citado acima perde força). Existem milhares de pessoas no mundo real, filhos de empresários ou não, que perderam entes queridos em assaltos e crimes quaisquer e nenhum deles, sob quaisquer circunstâncias virou o Batman pelo que se sabe. Ou seja, realismo é aquilo que em situações reais acontece e não aquilo que em situações reais não acontece.

Estou falando aqui de um sujeito que veste trajes de morcego e pula pelos arranhas céus de alguma grande metrópole ou mesmo que anda velozmente pelas vias urbanas em um carrão estranho para caçar criminosos Ou seja, não vale argumentar que existem idiotas fantasiados como o Batman por aí, visto que além de serem incompetentes no combate ao crime (nunca vi no jornal qualquer manchete do tipo, "Famoso gângster nova iorquino foi preso hoje pelo vigilante mascarado denominado Mosca"), se tornaram pseudo vigilantes após lerem alguma HQ ou após verem um filme dessa natureza (casos excepcionais em que a realidade imita a ficção e que, logicamente, não dá certo como na ficção, sendo, portanto casos irreais). Não, realmente não existe nada de realista no conceito do Batman enquanto personagem, nada de realista no conceito de alguém vestido de colant de morcego que caça criminosos com equipamentos diversos para levá-los a justiça dos homens comuns.

O que existe é um cenário que lembra o mundo real, um protagonista e seus coadjuvantes que lembram em alguns de seus comportamentos, ações, emoções, etc, pessoas reais, situações que lembram aquelas do mundo real e isso serve para a maioria dos personagens e obras de ficção existentes. Normalmente obras realistas tratam de pessoas e temas realmente comuns ao extremo e a exaustão, do cotidiano da vida comum, de relacionamentos e situações usuais, ainda que sejam personagens e obras de ficção. Podemos chegar ao mais próximo do realismo em um documentário, uma foto, um texto de cunho puramente descritivo, talvez um diário de vida, uma entrevista de história de vida, mas mesmo assim são representações da realidade, claro, uma visão que toma certas partes pelo todo, visto que nenhuma obra consegue e nem se pretende abarcar o todo real do mundo e das coisas reais do referido mundo (aqui uma leitura de Foucault poderia auxiliar nas divagações filosóficas inerentes entre realidade e representação do real, ou não). 

Mesmo assim muitos argumentarão que num paralelo com outros personagens super heroicos das HQs, o Batman seria um dos mais realistas. Como apontado mais acima, eu já expressei minha opinião que não, que a personagem está longe de qualquer realismo em suas premissas fundamentais. O que acho do Batman, e considero que o filme de Nolan fez isso como ninguém, é que ele pode ter um alto grau de verossimilhança se bem estruturado e trabalhado narrativamente com esse propósito e isso não significa ser realista, mas sim, ser mais palpável dentro de seu absurdo ficcional, de sua irrealidade inerente.

Em termos conceituais, o termo latino veri similis (de onde advêm a palavra verossimilhança), tratado por retóricos e oradores do porte de Cícero, significava algo que, em dada situação poderia ser aproximado ao real, ainda que não fosse a realidade concreta, mas sim um espelho do real, mesmo que a imagem representada não fosse a coisa em si e até pudesse ser distorcida ou invertida. Melhor dizendo, falar de verosimilhança significava afirmar que "se acontece tal coisa, em dada situação, poderia acontecer isso ou aquilo e isso após uma análise sobre o que se sabia sobre o assunto em questão, ainda que fosse algo inexistente, algo irreal". Assim, o que era verossímil não era necessariamente verdade ou realidade tal qual. Como bem afirmara Aristoteles sobre o assunto, "seria verossímil que namorados se amassem e inimigos se odiassem, ainda que não fosse verdadeiro ou real que isso acontecesse, pois existiam namorados que em dadas situações se odiavam e inimigos que se amavam".

Em outras palavras, um cara como o Batman não seria considerado realista em hipótese alguma para qualquer orador de renome e nem para qualquer um de nós que saiba a diferença entre realidade e verossimilhança. 

O que posso sustentar com tudo isso é que, em algumas obras, principalmente o supracitado filme do Nolan, "O cavaleiro das Trevas", Batman e seu ambiente ficcional, incluindo seus coadjuvantes, possuem certa verossimilhança. Ora, apesar de Batman não ser verdadeiro ou real, apesar de ser irreal qualquer ideia de um sujeito fantasiado que combata criminosos com tamanha capacidade, é verossímil na obra de Nolan, que, dada a ideia de que isso seria a tônica de uma obra ficcional, tal personagem irreal faça, em dada situação, coisas palpáveis e verossímeis segundo o que se apresenta na obra. 

Em outras palavras, o filme do Nolan, se utilizou de alguém irreal ao extremo, o Batman e deu-lhe coisas palpáveis para ele segundo graus elevados de verossimilhança, dando um aspecto pseudo realista, tudo isso auxiliado pelo fato das pessoas  que viram o filme confundirem conceitos como de verdade, realidade e verossimilhança. Nolan e outros escritores que apresentaram Batman ao mundo afirmaram em suas obras que, "dado o absurdo disso tudo, isso seria verossímil em dada situação, ainda que em essência toda a situação envolvendo um sujeito vestido de morcego seja irreal ao extremo" (diversos exemplos poderiam ser citados a partir do filme, como a pretensa realidade de pânico coletivo apresentada ao longo de toda a narrativa ou o experimento sociológico do Coringa ou mesmo uma entrevista em que um promotor público, Harvey Dent, afirma ser na verdade um vigilante que se veste de morcego todas as noites, etc). 

Com isso, muitas pessoas passaram a tratar algo irreal como papável sob critérios realistas, esquecendo-se que se trata de algo palpável apenas sob critérios verossímeis e nunca sob critérios reais (acho que um filósofo com raciocínio lógico apurado desmonta até mesmo a verossimilhança do Batman de Nolan e do Ano Um de Frank Miller).

Mas vejam, por ser verossímil, e isso apenas em algumas obras (não em todas), Batman é um personagem bastante interessante, talvez muito mais próximo de arquétipos junguianos do que qualquer outra personagem do universo ficcional de super heróis, mas isso é um assunto que não pretendo tratar nesse momento.
       

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