domingo, 16 de março de 2014

A Era Hiboriana de Conan e suas Nações



Um tema bastante interessante diz respeito aos chamados "usos do passado", mais especificamente, a forma como as sociedades de outros tempos e lugares são representados no presente, ou melhor, em algum contexto mais contemporâneo, com toda a carga ideológica, conceitual e temática inerentes ao ambiente sócio-histórico, político e cultural do referido contexto.

Como bem afirmado pelo historiador medievalista da Escola dos Annales, Marc Bloch: "o passado em si não é o objeto do historiador, mas sim a importância do presente para a compreensão do passado e vice versa". 

Isso significa afirmar que quaisquer fontes, documentos e textos, quaisquer conjunto de enunciados, quaisquer obras da literatura, ou mesmo quaisquer artefatos culturais de naturezas diversas (iconográficos, gráficos ou materiais) que tratem de algum passado, seja histórico ou munido de traços históricos, todos esses documentos dispõem de signos, significantes e significados inerentes ao contexto presente de consecução dos mesmos.

Nesse ponto estamos próximos daquela arrebatadora verdade acerca das obras de Homero, a Ilíada e a Odisseia. Devemos lembrar que os poemas narravam eventos em torno da Guerra de Troia e depois, sobre o retorno de um de seus heróis para sua terra natal, a Ilha de Itaca, tratando-se assim de eventos que teriam ocorrido por volta de 1200 A.C, no final do chamado Período Minoico-Micênico da história grega. 

Porém, quase toda a questão acadêmica sobre os conhecidos poemas não circunda somente na enfadonha Questão Homérica de definição da real autoria dos poemas, mas sim no fato de que o poeta (ou poetas, segundo alguns) colocou diversos traços de sua própria época histórica no passado retratado, traços históricos do Período Homérico da Grécia Antiga (e o nome, Período Homérico não se deve a esse fato?), com elementos culturais, políticos e sociais desse período.

Assim sendo, os brilhantes estudos de historiadores renomados do porte de Jean-Pierre Vernant ou de Pierre Vidal-Naquet sobre o Período Homérico não deixam de lidar com os supracitados "usos do passado", visto que eles procuraram compreender, entre tantas outras coisas, os elementos históricos do período de compilação e difusão do corpus homérico, os aspectos sociais, políticos e culturais do mundo do autor da obra e que foram inscritos e misturados, conscientemente ou não, ao passado mítico narrado. 

Não esquecendo-nos, claro, de deixar demarcado que grande parte desse processo ocorreu devido aos aspectos inerentes da tradição oral, que usualmente transforma os eventos narrados oralmente, devido as contínuas recitações de poemas e narrativas proferidas de "boca em boca".

É nesse sentido que trato o tema do título deste post, "A Era Hiboriana, de Conan e suas Nações". Isso porque, o criador da personagem Conan, da Ciméria, o texano Robert E. Howard não criou somente um personagem, consolidando igualmente todo um gênero literário e narrativo denominado de Sword and Sorcery (Espada e Feitiçaria).

Ele criou, para além disso, um "mundo meta-histórico", uma Era histórica ficcional com elementos históricos "reais", melhor dizendo, uma espécie de Era histórica anterior ao Neolítico, onde haveria um conjunto diversificado e complexo de civilizações e sociedades, que segundo a própria mitologia criada seriam destruídos em um grande cataclisma, evento esse que teria sido o marco inicial da história cronológica da humanidade, munida de sua evolução linear convencional comumente difundida em livros didáticos.

O que chama a atenção, no entanto, é que Howard se utilizou de elementos culturais, políticos, religiosos e sociais de civilizações históricas, tanto as ditas civilizações antigas como aquelas sociedades estruturadas na Idade Média européia e oriental, em uma espécie de miscelânea de povos e culturas, com representações de povos que apresentam semelhanças com os gregos e romanos antigos, com os mongóis do medievo, com os árabes e europeus do medievo, os japoneses, os chineses e os egípcios antigos, os persas, mesopotâmicos, eslavos, magiares e tantos outros.

A Era Hiboriana seria assim uma Era de pré-civilizações históricas, datada mais ou menos em 10.000 A.C, uma espécie de "contexto histórico-ficcional" de diversos povos e culturas que, segundo Howard foram destruídas e apagadas da memória da história convencional em meio há um fenômeno climático da natureza, ainda que tais povos tivessem traços daquelas culturas e civilizações que viriam a surgir a posteriori.

Tratar-se-ia de um passado semi esquecido de nossa própria história, um passado com características das civilizações que viriam a se organizar posteriormente e que para nós, contemporâneos do século XXI, estão inseridas na chamada História Antiga e Medieval, segundo os matizes convencionais da disciplina da história.

O próprio Howard, em meados da década de 1930 escrevera um texto chamado, A Era Hiboriana e no prefácio deste texto defendera que seu objetivo seria conceber uma conotação mais realista para as aventuras de Conan, como que um pano de fundo ficcional para uma série de narrativas que teriam uma base realista. 

Assim, a Era Hiboriana seria como que um parâmetro para as narrativas ficcionais de Conan, sendo que Howard se comprometia a seguir fielmente esse parâmetro previamente concebido por ele, tal como o faria qualquer escritor de um romance histórico em relação a "história real" das civilizações humanas.

Reinos, civilizações, impérios e nações ficcionais surgiram então nas linhas de Conan, bem como um mapa histórico-geográfico dos continentes da África, Ásia e Europa, unidos em uma espécie de Pangeia, onde estariam inseridos todos esses reinos, nações e civilizações baseados em elementos mesclados de sociedades da antiguidade e do medievo.

Nesse sentido, a famosa Aquilônia, onde Conan se tornaria rei ao final de sua vida e carreira seria culturalmente e politicamente a mescla do Império Carolíngio com o Império Romano Germanizado dos séculos IV e V D.C, a Ciméria, terra natal do bárbaro, equivaleria a uma Inglaterra Celta com suas tribos bretãs ainda não "civilizadas" e pré-romanas, enquanto que a Coríntia seria o amálgama ficcional da civilização grega clássica do século V A.C. 

A Nemédia, por sua vez, apareceria como que uma versão suis generis do Sacro Império Romano Germânico do medievo, a Stygia, quase que o espelho distorcido do Egito Antigo faraônico, misturado ao período pré-dinástico, ficando a Hiperbórea como o reflexo ainda mais bizarro da Rússia czarista misturada a um totalitarismo soviético anacrônico (ainda que não anacrônico em relação aos anos de consecução da narrativa de Howard), enquanto Khitai apareceria como a China de Marco Polo e Shem, seria vislumbrada como uma nação a integrar os povos semitas que um dia ocuparam a Mesopotâmia, a Síria, a Palestina e a Arábia de nosso mundo "real histórico".

Howard efetuou todo esse movimento como que em auxílio para suas tramas, de modo a torná-las mais verossímeis a seus leitores, o que sugere um alto grau de imaginação histórica da parte dele. Não é descabido explicar aqui que o filósofo da história, R.G. Conligwood afirmara, em uma famosa obra teórica, que ao longo do processo linear histórico ocorrera um desenvolvimento gradual da imaginação histórica por parte dos homens, principalmente aqueles do Ocidente.

Essa apurada imaginação histórica, entendida como o conjunto de ideias gerais que temos acerca dos fatos e eventos do passado das sociedades humanas, teria tornado a dita civilização ocidental cada vez mais consciente de seu papel e de sua identidade no mundo contemporâneo. 

Concordando ou não com as premissas da imaginação histórica enquanto imperativo identitário de uma mal definida civilização ocidental, uma coisa é certa; enredos narrativos ficcionais que baseiam-se na história acontecida costumam gerar identidades nos receptores dessas respectivas narrativas, visto que o passado é um dos elementos mais bem sucedidos para tais fins, sendo coerente e crível uma construção histórica complexa e não totalmente arbitrária para o sucesso dessas narrativas ficcionais.

É nesse ponto que gostaria de tratar o termo "Nações" na Era Hiboriana de Conan e no fato de Howard, conscientemente ou não, se valer de seu próprio contexto histórico, aquele da primeira metade do século XX e especificamente, aquele da Grande Depressão dos anos 1930, para construir seu mundo ficcional. 

Isso porque o mapa da Era Hiboriana e as narrativas sobre os próprios Reinos e Impérios desse mundo ficcional, possuem características históricas não somente do mundo antigo e medieval, mas igualmente dos Estados-Nações Modernos, principalmente aqueles definidos como Nações Civilizadas por Howard. 

Seguindo os princípios tradicionais de que uma nação se constitui pela história em comum, língua, instituições e etnicidade dos povos que integram seu território e são assim governados por um Estado enquanto aparelho ou entidade política, Howard deu um caráter moderno para essas Nações na obra, visto que, como bem explicado pelo historiador Eric Hobsbawm, todos esses elementos poderiam até pré-existir em quaisquer coletividades do passado, mas a homogeneização de todos esses elementos possuiriam uma artificialidade inexistente em períodos anteriores ao século XIX.

Em outras palavras, Howard executou a constituição de um mundo integrado por fronteiras nacionais ao estilo contemporâneo, um mapa recortado por nações herméticas e de fronteiras definidas, não somente espaciais, como também culturais, linguísticas, políticas e étnicas, o que inexistia no Mundo Antigo e muito menos no Mundo Medieval.

Um dos maiores especialistas brasileiros no que tange as narrativas de Howard e seu mundo ficcional, Renato Amado Peixoto reitera em dois textos acadêmicos que o auto questionamento a identidade sulista e texana do autor auxiliaram na consecução de uma narrativa permeada de verossimilhança, bem como uma identidade familiar que ele se atribuía e reforçava constantemente. 

Isso porque Howard seria um questionador niilista da moral sulista dos EUA, dando vasão ao mundo selvagem colonizado pela expansão do oeste do século XIX, aquele mundo dos índios cheroquis e das demais nações indígenas que foram exterminados pelos brancos. 

Por tal motivo que observamos a exaltação em sua obra do tipo selvagem e do bárbaro em contraposição ao homem civilizado. Isso também teria sido efetuado com base em sua identidade familiar, visto que ele descendia de ancestrais irlandeses por parte de mãe, levando-o a idealização dos povos celtas que lutaram e enfrentaram os ditos povos civilizadores, tais como os romanos da antiguidade.

Mas existe outro ponto na narrativa de Howard, especificamente aquela em torno da Era Hiboriana, que vai muito além de identidades pessoais, regionais ou familiares, uma identidade vinculada a seu macro-contexto. O fato é que Howard, tal como a maior parte dos homens da primeira metade do século XX, guardada as proporções, não conseguia conceber o Mundo Antigo e Medieval, ainda que inseridos em seu mundo ficcional,  fora dos marcos nacionais usuais do século XIX em diante, dos binômios nação-estado, povo-território, entidade política e coletividade social. 

Assim sendo, os estígios teriam uma mesma língua, seriam uma mesma nação étnica, governados por um Estado centralizado, uma entidade política estável, o mesmo valendo para quase toda a Aquilônia (com exceção de Pontain e da Gunderlândia, que constituiriam-se em feudos semi independentes), para a Nemédia e tantos outros reinos ou civilizações do mundo ficcional de Conan. 

O recorte espacial de sua Era Hiboriana não seria nem aquele do medievo e suas identidades fluídas e feudais e nem aquele do Mundo Antigo, com seus contrastes regionais e seus conflitos endêmicos entre centro e periferias conquistadas, mas sim, o espaço delimitado do mundo contemporâneo, ainda que os povos representados nesse espaço se parecessem culturalmente com aqueles da antiguidade e do medievo.

Os estudos em torno dos "usos do passado" então demonstram o quanto um tempo pregresso, ainda que pretensamente histórico em algumas de suas bases, acaba tendo ainda mais traços contemporâneos do que aparenta. O lado positivo, em se tratando de uma obra ficcional com traços históricos, é que, tal construto, ainda que um tanto arbitrário em relação ao passado, mas sincronizado com relação ao presente, gera identidades nos leitores, que se vinculam ao referido mundo apresentado na narrativa e se deliciam com as tramas de um bárbaro errante entre suas fronteiras, tão distante e ao mesmo tempo tão próximo ao nosso mundo nacional contemporâneo.


A Era Hiboriana de Conan e suas Nações delimitadas, tal como um mapa moderno de Estados-Nações consolidados.


quarta-feira, 5 de março de 2014

Em Roma...

Na Trilha do Tempo



Menênio Agripa acordou em meio aos restos de corpos destroçados na planície de Canae.
- Fora daqui, animal!! Bradou ao zéfiro, espantando um abutre que bicava-lhe a têmpora.
Uma confusão de odores fétidos sobrecarregava o pensamento, mas o som inaudível do nome do monstro cartaginês insistia em ecoar.
 -Aníbal, seu verme!! Gritou.
Como era possível o massacre de Canae? As legiões estavam em maioria sobre as tropas da Espanha e da África, lutando por sua pátria, “na defesa de nosso maiores”, como costumava-se dizer. Como era possível que 80 mil legionários romanos treinados e disiplinados tivessem sido massacrados perante a metade das tropas bárbaras?
- Malditos Númidas!! Bradou novamente, levado pela cólera e pela dor, resultado do profundo talho na têmpora e do ferimento na orelha esquerda. Que orelha?
- Onde está minha orelha? Deceparam minha orelha! Malditos Númidas! Maldito Aníbal!!
Novamente o som do nome do monstro proferido aos ventos, enquanto Agripa se levantava e cambaleava entre os corpos, muitos dos quais seus amigos e aliados. Lá e acolá estavam os Cláudios e os Fábios, destroçados como porcos no abatedouro, sem falar nos Júlios, mais distantes, bem como Caio Enobardo, Emiliano Fúngio, Luciano Póstumio ou mesmo Drúsio. Pobre Drúsio, tão jovem, espinhento, tagarela e valoroso, tão cadavérico e estúpido à beira do rio escarlate barrento.
Será que não haveria mais ninguém vivo para lutar e morrer a beira daquele Estige de água, carne e ossos?
- Ainda tem um romano com vida nessa maldita Itália, seus cornos virulentos!! Bradou novamente, enquanto seguia adiante, alquebrado até encontrar uma trilha sinuosa de tijolos alaranjados, para não dizer, amarelo ouro resplandecente. O cheiro continuava insuportável, não somente de sangue misturado com as tripas dos varões romanos mutilados, mas também das fezes de todas aquelas gentes com os buchos de fora.
Como Aníbal tinha vencido aquela batalha, munido somente da metade das forças romanas? Novamente a pergunta latejando na têmpora machucada.
Em meio ao calor da batalha, quando Menênio deu por si, os romanos já estavam cercados, em maior número sim, mas estranhamente cercados, aprisionados em sua própria cunha de ataque.
- Malditos Númidas!!
Uma última maledicência desferida e Agripa entrou finalmente na trilha de ouro, em direção a sua querida e distante Roma.
Roma. Sim. Todas as estradas levam a Roma. Onde ele ouvira essa expressão? Seria do ex-ditador, Fabius Máximus? Ah, se aqueles abutres tivessem seguido os conselhos do ditador… Agripa achava que ouvira a expressão no Fórum, em meio aos embates políticos do dia a dia. Sim, tudo sempre ocorria no Fórum, desde as festas, as procissões, os triunfos e até os assassinatos cotidianos das gentes metidas à bestas. Em Roma, bastava três clientes pobres para um sujeitinho qualquer se considerar melhor do que os demais. Nem precisava pertencer a nobilitas, a elite romana dona da maior parte das terras da península. Comprava-se dignitas nas esquinas, nas insulae e nas vielas sujas e bolorentas, com suas meretrizes tuberculosas.
Ah, querida Roma, tão bela e decadente, tão justa e insólita, tão grandiosa, lustrosa e ao mesmo tempo fétida e suarenta, tão cheia de luxúria e espanto. Ainda assim tratava-se sua querida Roma, a mãe de todos os romanos, de toda uma civilização em meio ao caos do mundo dos bárbaros, desprovidos de lei ou justiça, daquilo que tornava os homens superiores, a propriedade e a política. Malditos cartagineses por destruir aquela civilização! Malditos Númidas de Aníbal, pensava Agripa. 
O pai de Aníbal, Amílcar, já havia perdido na Sicília há tempos atrás e agora o filho desferia uma desforra insólita, atrevendo-se a atacar a Itália, no coração de um Império que se formara.
- Quem você pensa que é Aníbal? Acha que pode desbancar um Império com elefantes, mercenários e númidas?
Enquanto cambaleava pela trilha sinuosa, Agripa vislumbrou uma miragem, uma cidade estranhamente irreal, com seus prédios de mármore, madeira e esperanças perdidas. Roma? Talvez. Em chamas? Com toda a certeza dos deuses indigetes e da tríade capitolina.
- Por Júpiter! Espantou-se ante a visão avermelhada do fogo que consumia carne, vermes e vinho. Uma cidade em chamas aparecera ao lado da trilha, enquanto dois homens conversavam para além de suas muralhas, do alto de seus imponentes cavalos. Um deles era nitidamente romano, a julgar por sua postura altiva e pelo rosto de linhas retilíneas de guerreiro genuíno, o outro, certamente um grego.
Quem seriam? Não importava a Agripa saber naquele momento. O romano seria um mero pretor ou um cônsul? Não lhe cabia responder de antemão. O romano, a olhos vistos, vergava sua armadura dourada com a imponência do próprio Júpiter. Utilizando-se de um latim clássico e nobiliário, falou ao grego, sem nem mesmo se virar para olhar-lhe nos olhos:
- Estás vendo Políbio? Cartago, em chamas. Só temo que um dia seja a vez de Roma. Queiram os deuses que eu, Cipião Emiliano morra antes de minha Roma arder nas chamas de sua própria destruição, tal como os púnicos, outrora invencíveis estão vendo agora sua querida Cartago.
As figuras ficaram ocas, turvas e opacas, perdendo-se na névoa da fumaça que subia aos céus, como a silhueta de uma prostituta cor de ébano lustroso em meio às lupercais do porto de Ostia.
Cartago destruída? Foi essas palavras que Agripa ouviu? Como isso ocorreu? Quando? Será que enquanto os romanos eram destroçados em Canae, outra força atacava Cartago? Seria toda aquela mortandade cômica uma espécie de ardil macabro desenvolvido pelos sábios do senado?
Não, isso não podia ocorrer… Todas as forças militares estavam em Canae. A perda de sangue… Pensou. Sim, a perda de sangue e o calor insuportável estavam fazendo Agripa ver miragens. Talvez estivesse moribundo agora, em meio aos corpos dos demais, arrastando-se pelo chão enlameado como um porco de ventre aberto, imaginando-se em uma trilha de ouro e sonhos de grandeza, em direção aos Campos Elíseos.
Logo, uma nova miragem. Tratava-se de um homenzinho baixo, virulento e todo queimado, com bolhas vermelhas e pústulas abertas pelo que seria um rosto. Ele lhe apareceu como um fantasma lírico e apontou o dedo em direção a Cartago, em chamas. Com os olhos esbugalhados de dor e cólera, gritou-lhe:
- Vistes bem romano? Esse é o legado de sua civilização. Morte e destruição!! Essa é a herança de seu Império ardiloso!! Pax Romana… Os mortos estão sempre em paz, não é mesmo?
- Cala a boca, corno maldito!! Foram vocês que invadiram a Itália. Foi Aníbal quem trouxe a destruição para os campos da Campânia e da Sicília!!
Novamente bradou Agripa, febril, investindo contra o homem, seu gládio semidestruído em punho, enfiando-lhe o restolho da lâmina no ventre. A morte espreitou a planície novamente.
- Do que… Você está a falar? Falou-lhe o moribundo, caindo em seus braços.
- Cipião, o Africano venceu Aníbal, há mais de 50 anos atrás… Em Zama. Na batalha de Zama…
Novamente Agripa estacou na trilha e as imagens sumiram como que fugidias; a manifestação de uma mente destituída de razão. Foi quando ele percebeu que avançar na trilha significava avançar no tempo, um tempo que mostrava a glória do Império Romano, invencível e eterno, como deveria ser.
Afinal, não era Roma conhecida como a Cidade Eterna? Quem Aníbal pensava que era por ousar intencionar romper com o destino manifesto de Próculo, aquele estimado cidadão que ouvira do próprio Rômulo em pessoa a declaração deste destino, logo quando o rei elevou-se a divindade?
Agripa estacou na estrada e gargalhou alto, gritando novas palavras virulentas aos ventos:
- Não há como nos vencer Aníbal! O destino romano é triunfar!! Por mais que venhamos a perder batalhas, nós sempre venceremos a guerra, ao final!!
Com as últimas forças sobre humanas que lhe restavam, Agripa levantou-se em meio à trilha e começou a correr, sempre em frente. Queria vislumbrar a vitória final de Roma sobre o mundo conhecido, o apogeu do Império Universal, um imperium sine fine.
Ele sabia agora que Aníbal seria derrotado por certo Cipião, sabia também que Cartago cairia perante as forças romanas, sendo engolida pela língua de fogo de sua própria hybris.
Sim, mas ele queria vislumbrar mais, queria conhecer a força daquele Império invencível, sentir cada momento inebriante da vitória. Observar a conquista da Grécia, da Hispânia, da Macedônia, do Egito e do Oriente Antigo, quem sabe da Britânia, tão longe e inóspita.
De súbito, ele estacou. Lembrou das palavras do romano, em cima do cavalo, diante de Cartago. Estás vendo Políbio? Cartago, em chamas. Só temo que um dia seja a vez de Roma. Queira os deuses que eu, Cipião Emiliano morra antes de minha Roma arder nas chamas de sua própria destruição, tal como os púnicos, outrora invencíveis estão vendo agora sua Cartago.
Palavras sábias ou apenas temores infundados?
E se o destino e a fortuna caminhavam sempre para um mesmo fim, tal como estava escrito nas histórias de Heródoto?
E se o destino de todas as cidades e Impérios fossem suas respectivas destruições, tal como outrora, o Império do grandioso Alexandre?
Menênio Agripa estacou e fechou os olhos. Negou-se a caminhar novamente, decidindo voltar ao presente, onde o espírito romano estava alquebrado em meio à planície de Canae, ainda que provisoriamente. Ele decidiu que viveria o presente, sabendo que após aquele momento de derrota, Roma triunfaria.
O futuro distante? Agripa se negava a conhecer. Assim, não veria a queda do Império Romano perante os povos germanos do norte, no distante século V d.C.
A Trilha do Tempo desapareceu e Menênio Agripa permaneceu em meio aos corpos da derrota romana de Canae.
Ah, mas pensando bem… Que bela derrota fora aquela!!

Sobre textos e contextos
Por Marco Antônio Collares
O conto se passa em dois momentos diferentes da história de Roma. Iniciando na Segunda Guerra Púnica (218 – 202 a.C), quando as forças de Aníbal invadiram a Itália, com forças vindas da Espanha e da Numídia, no norte da África. Não devemos esquecer que a famosa batalha de Canae, mencionada no conto, foi real, por se tratar de uma aula de estratégia, na qual o cartaginês esmagou 80 mil romanos. Aníbal poderia ter invadido Roma logo após, mas negou-se a isso, preferindo percorrer a Itália de modo a enfraquecer ainda mais uma cidade já vencida. 
A máxima de Asdrúbal (não o irmão de Aníbal, mas um general), de que “ele sabia vencer uma batalha, mas não a guerra” foi narrada por Políbio, que escreveu a história da guerra. Caminhando na trilha, o personagem do conto entra em outro tempo, na Terceira Guerra Púnica (149 – 146 a.C), quando as forças romanas de Cipião Emiliano destruíram e incendiaram a cidade inimiga. O diálogo entre Cipião e o já mencionado historiador grego, Políbio é narrado por Catão e Varrão (autores do século II e I a.C, respectivamente). Importante mencionar que o conto é cheio de referências da sociedade, da história e da mentalidade romana. São elas:
“Na defesa de nossos maiores” era uma referência comum, significando a defesa dos costumes ancestrais, o mos maiorum, ou mores, de onde advém a palavra moral.
O ditador Fábius Máximus realmente existiu. Sua tática era simples; evitar confrontos diretos com Aníbal para enfraquecê-lo, afinal ele estava na Itália, terra romana, cheia de aliados romanos.
Os númidas, constantemente mencionados no conto eram parte da cavalaria cartaginesa. Eram negros africanos da Numídia, ao lado da região da Tunísia atual, onde ficava Cartago. Eram excelentes lanceiros e foram essenciais na batalha de Canae, contendo a cavalaria romana nas pontas da formação de ataque, de modo ao sucesso do cerco empreendido por Aníbal.
nobilitas era a elite patrício-plebeia formada ao longo dos séculos V – III a.C, com o casamento misto entre patrícios e plebeus, em sua maioria, ricos comerciantes.
As insulae, mencionadas no texto eram pequenos apartamentos locados para os pobres de Roma, normalmente insalubres e feitos de madeira, pegando fogo constantemente. Uma verdadeira ratoeira humana na periferia romana, onde os pobres moravam e onde os ricos ganhavam dinheiro fácil com aluguéis baratos.
O termo Cidade Eterna fazia parte de uma tradição referendada por Políbio, assim como o termo Imperio sine fine. No primeiro caso, Políbio afirmava o sucesso da constituição mista romana, baseada na mistura da monarquia, aristocracia e democracia, com seus magistrados, senado e assembleias, o segundo referendava a ideia de expansão contínua do Império.
Por fim, Próculo e o destino manifesto aparecem na tradição escrita de Virgílio e Tito Lívio. Tratar-se-ia do último cidadão a vislumbrar o rei lendário, Rômulo, antes de ele ascender à divindade e se tornar o deus Quirino, ou Jano Quirino, o deus das portas e passagens. Quando Roma estava em guerra, as portas de seus templos estavam abertas, o que fortalecia a ideia de uma cidade belicosa e que estava destinada a conquistar outros povos, segundo a tradição oral e escrita imperial.